É muito comum utilizarmos a expressão “à frente do seu tempo” para diversas coisas, seja para pessoas, civilizações, produtos culturais, etc. Algo em comum que liga essas diferentes coisas, parte de uma ideia. Nos videogames, o que costumávamos observar de títulos que eram à frente de seu tempo se deviam a inovações de gráfico, jogabilidade ou um enredo mais maduro.

Entretanto, no início do milênio, poucos games se tornaram notáveis por abordar uma temática diferenciada e brincar com a interação entre jogo e jogador. A cada ano se torna mais atual os temas abordados em Metal Gear Solid 2 Sons Of Liberty. Essa constatação, na entanto, não serve para reverenciar o diretor da série Hideo Kojima, mas sim para nos deixar atentos sobre a condição social de nosso tempo, nomeada como Pós-Modernidade.

O conceito de Pós-Modernidade

Entender a Pós-Modernidade é entender como a Modernidade foi desconstruída. O ideal europeu de razão moldava os progressos da humanidade, de que a ciência traria a liberdade e a felicidade, porém a Modernidade passou a ser questionada após as duas grandes guerras, pois, a racionalidade não era para ser o oposto da barbárie? O conceito pós-moderno tomou forma nos anos 70, surgindo no campo das artes, e com o fim da Guerra Fria, a Pós-Modernidade passou a ser designada no aspecto sociocultural.

Dentre suas características está a crise nas ideologias utópicas, do abalo do Iluminismo com as duas guerras mundiais, passando à descrença sobre comunismo após a queda da União Soviética. A ideia de que um único modelo político seria o caminho da humanidade ficou dispersa. Uma razão pré-determinada para se viver vista no Modernismo, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo, deu lugar para a incerteza na Pós-Modernidade.

Vários autores contribuem sobre a estrutura conceitual da Pós-Modernidade. Atualmente, quando entramos em contato com suas ideias, conseguimos aplicá-los as nossas vivências do cotidiano, mas em 2001, quando a internet não era tão presente nas nossas vidas, parecia não inserida na vida prática. Talvez esse distanciamento tenha provocado o estranhamento que Metal Gear Solid 2 acabou causando aos ansiosos fãs desse tão aguardado título.

 

Solid Snake durante o Incidente no Petroleiro.

 

Desconstruindo o imaginário popular

Metal Gear Solid lançado em 1998 foi um título aclamado, tornou-se um dos grandes clássicos do Playstation, consolidou uma franquia que até então possuía jogos obscuros e colocou em evidência o nome de Hideo Kojima. A experiência de Metal Gear Solid é como se jogador interagisse com um filme de ação. Com uma trama madura de guerra e experimentos genéticos, o protagonista Solid Snake rapidamente se tornou um ícone.

Metal Gear Solid 2 foi anunciado como um dos primeiros grandes títulos do Playstation 2, na publicidade estava certo que Solid Snake seria novamente o herói, desde os trailers até a própria embalagem final do jogo. Na versão de demonstração, o jogador assumiu o papel de Snake e experimentou todas as melhorias gráficas e de jogabilidade, que até hoje são impressionantes.

Esse trecho de gameplay, o Incidente do Petroleiro, é a parte inicial de Metal Gear Solid 2, tornando-se de cara memorável pela cena cinematográfica que mostra Snake se infiltrando no navio. A introdução cria uma expectativa de que estamos com Solid Snake em uma evolução do jogo anterior, e a sequência dos eventos serviria para expandir essa sensação. No entanto, o primeiro ato encerra plantando uma dúvida na cabeça de todos que jogaram, pois Snake é dado como morto.

 

Introdução de Raiden

Em seguida um novo contexto surge, o jogador assume um personagem misterioso que teria de abandonar o codinome “Snake” e passar a usar “Raiden”. O personagem, durante a ascensão do elevador, retira as suas roupas de mergulho e revela sua identidade, uma corpo esguio com capacidades acrobáticas e feições andrógenas. Essa substituição de protagonista sem aviso foi o grande motivo de decepção dos jogadores. Um ícone de soldado como Solid Snake trocado por uma figura mais frágil, contraponto todos os modelos de herói ocidental.

Raiden foi uma grande provocação de Kojima ao arquétipo de herói que Snake consolidou no jogo anterior, um fator super importante que permitiu que as temáticas de Metal Gear Solid 2 fossem possíveis de serem abordadas.

A realidade dando lugar à representação

Raiden é quem deve atuar em uma missão de resgatar reféns, incluindo o presidente dos Estados Unidos, de um ataque terrorista na instalação de descontaminação Big Shell. Antes o protagonista só havia atuado em missões de simulação, dentre elas provavelmente está inclusa o Incidente no Petroleiro, que ocorreu há 2 anos.

Há uma grande diferença entre protagonistas, pois Raiden é um personagem cheio de incertezas internas, longe do que é Snake, que mesmo nas situações mais difíceis sempre passava ao jogador a segurança de que iria agir de forma heróica.

 

Instalação Big Shell por Killerx20.

 

Metal Gear Solid 2, na progressão de seus eventos, é bastante confuso, principalmente porque faz alusão ao roteiro do jogo anterior. Isso é revelado como o plano S3, a Simulação de Solid Snake, em que os eventos do primeiro Metal Gear Solid seriam vividos de forma semelhante para Raiden, que no fim o transformaria em um novo soldado lendário, não por questões genéticas, mas pela experiência. Toda a instalação Big Shell serviu de palco para esse experimento, os personagens atuam como marionetes para cumprir esse objetivo.

No entanto, depois se revela que o S3 era um plano ainda maior organizado pelos Patriots que, resumindo, são as inteligências artificiais que ditam o rumo dos Estados Unidos (falei melhor deles nesse outro post). O S3 não se trata de criar um novo Solid Snake, mas sim da Seleção de Sanidade Social, que consiste no controle da informação, não pela censura, mas pela criação de contextos, transformação de meias verdades em verdade.

O filósofo francês Jacques Derrida discute a verdade como ponto em que por meio do discurso construído sobre ele é dado como certo, e utiliza o termo “desconstrução” no ato de remover as camadas do que realmente existe por trás do discurso.

“Memórias humanas, ideias, cultura, história. Os genes não contêm nenhum registro da história humana. É algo que não deveria ser passado adiante? Deveria essa informação ser deixada à mercê da natureza? Nós sempre mantivemos registros de nossas vidas. Através de palavras, imagens, símbolos, de tablets a livros. Mas nem toda a informação foi herdada pelas gerações posteriores. Uma pequena porcentagem do todo foi selecionada e processada, depois repassada. Não muito diferente dos genes, na verdade. Isso é o que a história é, Raiden. Mas no atual mundo digitalizado, informações triviais estão se acumulando a cada segundo, preservadas em toda a sua natureza. Nunca desaparecendo, sempre acessível. Rumores sobre questões mesquinhas, interpretações errôneas, difamação. Todos esses dados inúteis preservados em um estado não filtrado, crescendo a um ritmo alarmante. Isso apenas retardará o progresso social, reduzirá a taxa de evolução.” – IA artificial dos Patriots para Raiden.

O objetivo dos Patriots como inteligência artificial é controlar a forma como as pessoas compreendem o mundo pois, segundo eles, os seres humanos não estão no controle de seu próprio pensamento ou cultura. Durante esse mesmo diálogo, os Patriots falam de pequenas comunidades que se fecham como pequenas lagoas, vazando “verdades” para a crescente fossa que é a sociedade em geral. As diferentes “verdades” entre essas comunidades não se chocam, nem se misturam.

Ninguém é invalidado, mas ninguém está certo. Isso entra em outro tema que é a Pós-Verdade, termo que o dicionário da Oxford como a palavra de 2016, que é a relação de circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal. Uma ideia tão nova, que envolve também o tão falado termo fake news, e Metal Gear Solid 2 trouxe essa discussão em 2001.

 

Solid Snake, o convidado não esperado no palco da Big Shell.

 

Por que Raiden é tão importante?

A primeira ideia do plano S3 aborda a criação de uma imagem influenciada pelo contexto e ambiente, Raiden caminharia seguindo um roteiro para se tornar um novo Solid Snake. E enquanto ponte do jogador para o jogo, o fato do Raiden ser um personagem em construção é muito importante, e como falei no início, a Pós-Modernidade é marcada pela incerteza, e protagonista é cheio de dúvidas e inseguranças.  Assim como ele, nós como jogadores só vivenciamos a experiência de infiltração em uma instalação como a Big Shell em um videogame, ou seja, em uma simulação, do mesmo jeito que o próprio Raiden foi treinado.

Nós estarmos imersos em um mundo de imagens, onde as representações assumiram o espaço do real. Não vivemos mais em uma realidade, e sim uma hiper-realidade, nós somos constituídos de imagens, não apenas a física, mas a de nossas redes sociais digitais. Esse mundo das representações é bem mais sedutor que a realidade dura que vivemos, essa é a ideia que o autor Jean Baudrillard traz em sua obra Simulacros e Simulações, inclusive referenciado no filme Matrix.

 

A “trolada” do jogo colocando a tela de missão fracassada no meio da gameplay, na verdade é a representação do bug que a inteligência dos Patriots está sofrendo, a quebra da simulação.

 

Durante a missão na Big Shell, Raiden recebe o suporte de seu superior, o Coronel Campbell e de sua namorada Rose, porém descobre que eles compõem a inteligência artificial dos Patriots. Essa dúvida do protagonista sobre seus vínculos afetivos nos traz a ideia de Modernidade Líquida, do sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman. A palavra “líquido” foi aplicado como uma metáfora para explicar a falta de solidez em nossas relações no dia-a-dia, não apenas nos vínculos pessoais. O “líquido” também diz respeito a velocidade das transformações, a forma como as informações fluem e como lidamos dela. Nunca antes tivemos tanto acesso a informação, mas o quanto dessa quantidade nos serve de conhecimento? Quantos dos nossos “amigos” das redes sociais realmente nós temos uma relação afetiva?

 

Um final otimista?

Metal Gear Solid 2 é uma obra que você experimenta pela primeira, entendendo o que se passa, você se sente imerso em pessimismo, o fato de ser um videogame alivia um pouco do desconforto de se enxergar nessa temática vários exemplos do cotidiano. Entretanto, no que parece uma tragédia, emerge uma sensação mais otimista. Após a batalha contra o último chefe, Raiden encontra com Snake que dá o tom a respeito da liberdade de nossas escolhas.

Não existe tal coisa no mundo quanto a realidade absoluta. A maior parte do que eles chamam de real é, na verdade, ficção. O que você acha que vê é tão real quanto seu cérebro lhe diz. […] podemos contar a outras pessoas sobre – ter fé. O que nós tivemos fé. O que achamos importante o suficiente para lutar. Não é se você estava certo ou errado, mas quanta fé você estava disposto a ter, que decide o futuro. […] Escute, não fique obcecado com as palavras. Encontre o significado por trás das palavras e decida. Você pode encontrar seu próprio nome. E o seu próprio futuro … E o que você escolher será você. – Solid Snake para Raiden, que na verdade se chama Jack.

Para fechar Jack encontra sua namorada Rose, mas de verdade, não uma ilusão. Fica bem claro o quão esclarecido o personagem chega nesse momento, dizendo que não é um determinismo que define o futuro das próximas gerações, e sim a experiência vivida. A Pós-Modernidade não se insere só negativamente nas nossas vidas, pois, na medida do possível, as nossas realidades estão moldando menos a nossas escolhas e como nós lidamos com a cultura.

 

O encontro de Jack e Rose.

 

Metal Gear Solid 2 como jogo, num todo, está longe de ser o meu favorito da franquia, o ponto mais fraco que ele possui é o elenco dos vilões, em especial os Sons Of Liberty, quando comparados com os chefes do restante da franquia. Mas se analisarmos o tanto de questionamentos que traz, é facilmente um dos jogos mais importantes da história. Em uma época de início de geração, todos esperavam o quão bonitos e detalhados seriam os jogos do Playstation 2, como era a evolução técnica dos videogames no novo milênio, Metal Gear Solid 2 foi além de qualquer capacidade formal.

Hoje em dia estamos mais familiarizados com os jogos indies, que não seguindo os moldes das grandes empresas, trazem temáticas provocadoras, em que você consegue perceber que existe uma intenção artística. Os desenvolvedores buscam passar valores simbólicos durante e após a jogatina, e não aquela experiência que termina nela mesma. Por mais que você não goste do trabalho do Hideo Kojima, é notável que ele sempre buscou deixar uma mensagem em seus jogos. Metal Gear Solid 2 era para ser seu último jogo da franquia, isso é visível na mensagem positiva no final. Porém Kojima teve de dar continuar com outros excelentes títulos, e na minha opinião o Phantom Pain de 2015 assumiria o mesmo papel de Sons Of Liberty, com mais brilhantismo técnico. Infelizmente acabou sucateado pela própria Konami, por demorar demais em ser lançado, e o que importa para uma empresa é lucrar. Ver dinheiro ser gasto em um projeto mirabolante que sabe-se lá quando Kojima e sua equipe iria finalizar, realmente não estava nos planos da Konami.

 

Assim como Big Boss pede para o jogador desligar o console no Metal Gear original de 1987, os Patriots fazem o mesmo em 2001, já que ambos os protagonistas estão perto da verdade.

 

Depois desse texto de um jogo tão complexo, que ainda tive que retirar muitas coisas, deixo um questionamento. Será que essa capacidade interativa dos videogames pode nos proporcionar novas formas de enxergar o mundo? Ou apenas é mais uma ferramenta sofisticada de nos manter na alienação. Podemos, mesmo que ainda no entretenimento, ir além dessa matrix.