Meus caros leitores, como estamos essa semana? Espero que bem e tranquilo, pois no mercado de HQs a coisa é diferente! Treta é o que não falta no cenário brasileiro de quadrinhos e na semana passada estourou uma que dividiu o público e os profissionais do mercado. Afinal de contas, se tá tudo tão polarizado, por que ainda meter política no nosso gibizinho?!

A editora Pipoca & Nanquim anunciou recentemente o lançamento de uma nova edição em dois volumes de “Recado a Adolf“, do mestre do mangá Osamu Tezuka, que retrata o período da ascensão do Partido Nazista e a Segunda Guerra Mundial. O quadrinho foi lançado originalmente no Japão entre 1983 e 1985 na revista Shukan Bunshun e já havia sido publicado no Brasil pela Conrad, em 2006.

Acontece que, quando os primeiros exemplares do volume 1 da nova edição da PN começaram a chegar para os compradores, uma polêmica tomou forma rapidamente e explodiu nas redes sociais. Tudo por conta de uma fala adaptada num momento específico da HQ.

No trecho abaixo o texto do personagem faz uma clara referência a uma fala do presidente Jair Bolsonaro, que havia ironizado a pandemia de covid-19, em pronunciamento televisionado e em diversas entrevistas. Bolsonaro chamou a doença, causada pelo novo coronavírus, de “gripezinha” mais de uma vez e a tradução se utilizou desta fala ao adaptar o texto.

Tradução anterior da Editora Conrad x Nova tradução da Pipoca & Nanquim

Muitos leitores, mesmo alguns que se diziam não apoiadores do presidente, se posicionaram contra a tradução da PN, alegando que o texto original foi “adulterado”, que a “referência se perderia no tempo” e que “a editora só queria lacrar“. Postagens tomaram vários grupos de quadrinho no Facebook e inúmeras discussões acaloradas preencheram os dias seguintes.

Bom, vamos aos argumentos, lembrando que esta é a minha fala, e eu falo como escritor, revisor de textos e editor de quadrinhos em formação (desculpem a carteirada de leve).

Antes de qualquer coisa, a tradução de um texto implica em adaptação de um texto. Geralmente esses são processos distintos, mas nada impede um tradutor de entregar um texto com as adaptações que ele achar necessárias. Drik Sada, profissional de currículo extenso no mercado editorial, é a tradutora da edição da PN e, de acordo com a editora, este trecho foi uma adaptação dela.

Drik fez aqui um excelente trabalho de adaptação, uma vez que manteve a mensagem do texto intacta e ainda foi capaz de criar conexão com o cenário político atual, em que o pensamento conservador de extrema-direita escalou globalmente, estimulando também o movimento anticiência entre outras coisas. Onde mais isso ocorreu? Na Alemanha de Hitler.

O texto não foi “adulterado”, mas sim adaptado e, por mais que daqui a 20 anos pouca gente lembre da infame frase do atual presidente e a referência se perca, o sentido da frase continuará intacto e não prejudicará o entendimento do leitor.

Vale lembrar que a Pipoca & Nanquim não é a primeira editora a gerar polêmica com a adaptação de texto.

Em “Cavaleiro da escuridão – Perolado e o poço”, de Grant Morrison e Cameron Stewart, publicada em Batman # 98, pela Panini, o tradutor decidiu incluir um termo que cai rapidamente em desuso e que dificultará a compreensão do leitor que se deparar com o texto daqui a alguns anos.

Por último, ainda que haja uma retórica que parte de um princípio equivocado e mal intencionado no argumento de que “só queriam lacrar”, respondo que ao contrário, queriam lucrar. Dinheiro é o que move uma editora e a permite lançar mais quadrinhos, e o que o PN fez foi abraçar a adaptação da tradutora, sabendo do burburinho que causaria, especialmente em uma obra bastante aguardada como “Recado a Adolf”.

Os editores já deixaram claras as suas opiniões políticas em diversos vídeos no principal canal de comunicação com os fãs e em suas redes sociais e parecem convencidos de que seu público se mantêm, em sua maioria, progressista e avesso à disparates como o da frase presidencial.

Não restam dúvidas de que a escolha editorial foi acertada e não prejudica a obra, pelo contrário, adiciona uma camada de compreensão bem conectada com o texto original.

Por fim, se eu estou escrevendo uma coluna sobre “Recado a Adolf” e 80% dos youtubers de quadrinho estão comentando o caso, é porque a obra já causou um impacto e isso pode ser muito bem-vindo em termos de venda. A ver como eles irão se pronunciar publicamente sobre o assunto.

De qualquer forma, se alguém realmente espera ler quadrinhos e não encontrar política (ou pelo menos uma que não seja a “sua”) deve se incomodar constantemente, mesmo lendo Turma da Mônica.

Até a próxima!