Você já ouviu falar do poder curativo do riso?”
O humor é muito importante para Freud, Comte-Sponville… e o Coringa.

Por que estamos tão sérios? É o que muita gente tem se perguntado ultimamente. Mas é curioso que a maioria dessas pessoas que reclamam de como o mundo ficou muito chato rapidamente são contra piadas que explorem algum elemento de sua vida.

Por outro lado, nunca fomos tão zoeiros. A cada dia um novo meme é inaugurado, um novo viral zera a internet. As redes sociais estão cheias de evidências nesse sentido, comprovando que a demanda por humor é enorme.

Mas não estou aqui para escrever uma tese sobre o assunto. Eu só gostaria de fazer uma pequena reflexão sobre o humor através de um grande personagem da cultura pop que em mais de 70 anos de existência nunca esteve tão atual quanto agora: o Coringa.

Vamos tomar como referência aqui a obra prima de Alan Moore e Brian Bolland. Sim, meus amigos, eu estou falando de A Piada Mortal. Uma história em quadrinhos que tem tantos méritos que qualquer um que gosta de contar histórias deveria ler.

Resumindo ao máximo, A Piada Mortal é sobre o Batman caçando novamente o Coringa, enquanto este planeja demonstrar ao Morcegão que ser insano não é um problema, mas a solução. Para tanto, o Palhaço Príncipe do Crime decide atormentar a pessoa mais lúcida e justa que conhece, o Comissário Gordon.

Para o Coringa, a vida por si própria é absurda. Numa hora você é um químico desempregado tentando sustentar a esposa grávida, noutra você é um louco sendo perseguido por um justiceiro vestido de morcego. Pelo menos é o que os flashbacks do vilão nos contam (sendo que ele próprio confessa que não tem certeza se tudo aconteceu deste jeito).

Basicamente, ele aceitou a proposta de alguns bandidos de roubar a antiga fábrica em que trabalhava para ajudar a pagar as contas. Mas depois que sua esposa falece a empreitada perde o sentido. Ainda assim, trato é trato. Ele é forçado a guiar os bandidos, mas acontece algo de errado. A polícia e Batman aparecem e o pobre diabo cai num tanque de substâncias químicas, emergindo depois com sua aparência atual.

A teoria do Coringa é de que um dia ruim é tudo o que precisamos para perceber que a vida não tem sentido, o que demonstra que ele também bebeu um pouco de existencialismo quando caiu naquele tanque de substâncias químicas. Mas diferente do Coringa, os existencialistas viam isso como uma benção. O fato da vida não ter sentido, das coisas não estarem definidas desde o começo, implica que o homem deve dar sentido a ela com suas ações.

Assim, o Coringa e o Batman são muito próximos porque ambos tiveram um dia ruim que definiu suas trajetórias desde então. Mas o Cavaleiro das Trevas de Gotham segue regras, enquanto seu antagonista não. O Coringa se entregou à loucura e quer que seu inimigo faça o mesmo.

“Tá, tudo bem. Dia ruim, loucura… entendi. Mas onde entra o humor aí, Vinicius?” Agora é importante pedir ajuda a um sujeito que entendia muito bem de loucura e, por incrível que pareça, de humor: Sigmund Freud.

O pai da psicanálise é conhecido por sua teoria de que a mente humana é dividida em partes. Algumas delas são definidas por regras (o consciente) e outras por impulsos (o inconsciente). Para Freud, o preço da civilização é que as pessoas precisam reprimir seus impulsos, seu inconsciente, para viver em sociedade e daí nascem as neuroses.

Muitas vezes o humor nasce do nosso inconsciente. O humor não é só um estado de espírito, é um meio de ver o mundo. Melhor, é uma forma de nos ver. Para o Coringa o mundo é ridículo e por isso ele se comunica através de piadas. 

Ninguém faz humor sozinho. O humor é uma síntese entre o individual e o coletivo, entre o particular e o singular. Como quase tudo nesse mundo, o caráter do humor depende do seu uso. Ele pode ser um veneno ou um remédio. Ele pode exorcizar nossos demônios ou alimentá-los. A linha é tênue.

Apontar o ridículo exclusivamente dos outros e nunca de si pode ser considerado uma virtude? O filósofo André Comte-Sponville considera o humor uma grande virtude. Principalmente o humor que investe na autoderrisão, ou seja, rir de si mesmo. Para Freud, rir de si mesmo é uma maneira mais saudável de conviver com o nosso ego. Evidente que quando alguém se considera ridículo demais temos então um problema de autoestima. Talvez o melhor caminho seja o meio termo entre rir de si e dos outros.

Acho que está bem claro à essa altura, a que tipo de humor o Coringa se vincula. Ao longo dos anos nas mais diversas mídias, nos raros momentos em que alguém consegue pregar alguma peça no vilão, sua reação quase sempre é a fúria. Ou seja, o palhaço não consegue rir de si mesmo. Ele ri do absurdo da vida, mas não dos seus defeitos, de suas fraquezas, de suas derrotas.

Voltemos à Piada Mortal. Aviso aos navegantes: spoilers à vista. Batman encontra um Gordon torturado, mas ainda assim lúcido e justo; Batman e Coringa lutam e o herói joga na cara do seu arqui-inimigo que sua teoria foi refutada, pois Gordon não se rendeu à loucura. Derrotado, o Coringa ouve uma proposta do Morcegão: ou eles continuam nessa vida e se matam ou procuram juntos ajuda psiquiátrica.

Por fim, o vilão lembra uma história sobre dois malucos tentando fugir do hospício. Eles vão pular do terraço para outro prédio, mas está escuro demais para enxergar alguma coisa. Ainda bem que trouxeram uma lanterna. Um deles conseguiu escapar, mas o outro tem medo. Não tem problema, diz o louco com a lanterna, eu ilumino o caminho. Nada feito, responde o colega, vai que você apaga a luz enquanto estou atravessando!

Para bom entendedor, meia piada basta. Eis a interpretação do Coringa sobre sua relação com o Batman. Eis também o palhaço que não ri de si mesmo… rindo de si mesmo. Enfim, ele aceita a dura realidade que o absurdo não é justificativa para ser insano e cruel. O culpado de suas atrocidades não foi o dia ruim que teve no passado, mas seu próprio ego.

Existem muitas teorias sobre o significado das últimas cenas de A Piada Mortal. Batman matou o Coringa ou não? Eu prefiro enxergar esse desfecho como uma vitória pequena, minúscula, microscópica, mas ainda assim uma vitória. Tanto do herói contra o vilão, quanto do vilão sobre seu próprio ego. Algo tão inusitado e inesperado que até o sisudo antagonista do Coringa se desfez em gargalhadas. Talvez, quem diria, podemos aprender algo com o bobo, o joker, o palhaço.