Há muito eu escutava falar do trabalho de Wagner Willian, mas só em janeiro de 2022 resolvi corrigir a falha moral de não lido nenhuma obra sua. Não poderia ser de forma melhor, uma vez que o autor estava em Manaus para participar da Semana do Quadrinho Nacional e eu pude, além de conhecê-lo pessoalmente, comprar seu mais recente trabalho, “Todas as pedras no fundo do rio“, ganhar uma dedicatória e finalmente lê-lo.

Sinopse: De um lado, aqueles que lutam por direitos iguais. Do outro, conservadores fanáticos. Duas passeatas, dois grupos que se chocam, iniciando uma verdadeira revolução racial após a Segunda Guerra Mundial. Em um país fictício, isolado da América do Sul, onde imigrantes fugidos do sul dos EUA, russos e brasileiros estão dispostos a acender o pavio, três personagens ultrapassam preconceitos, obscurantismo religioso e segredos terríveis. Baseado em diálogos reais.

Como eu já imaginava, comentar sobre “Todas a pedras no fundo do rio” é uma tarefa complexa. Claro, uma vez que Capris, o país latino-americano fictício que Wagner cria para a HQ, é um espelho da nossa complexa realidade, abordando temas que ecoam na sociedade brasileira atualmente. Curiosamente a história de Dimitri, Lara e Daren, os protagonistas da HQ, se localiza na década de 1950.

Capris é um país colonizado, com a população negra marcada pelo hediondo crime da escravização e dominado por uma sociedade conservadora, violenta e racista. Ao escolher transformar Capris num duplo piorado de seu país vizinho, Wagner vai além das meras comparações e constrói uma nação completamente possível. É fácil imaginar um norte-americano desinformado recorrendo ao Google para pesquisar sobre o pequeno país, caso tenha contato com a obra. E isso só acontece pois o cuidado do autor em encaixar bem as referências culturais, os temas e até mesmo a falsa geografia, é preciso e convincente. Capris não existe, mas poderia existir.

A arte de Wagner é um deleite e evoca muitas referências para os leitores de quadrinhos e os apaixonados por cinema. As cores complementam muito bem a construção de atmosfera nos momentos-chave e o layout das páginas e a diagramação dos quadros mostra um esforço bem-vindo em fugir do tradicional.

Fugir do tradicional, aliás, traduz bem a experiência de ler “Todas a pedras no fundo do rio”. Algumas pontas soltas e detalhes obscuros podem não ser tão palatáveis para o leitor acostumado com as estruturas narrativas mais conhecidas e estabelecidas. Alguns podem estranhar as metáforas visuais e se contorcer por respostas sobre o que aconteceu com tal personagem ou se determinada cena era real ou ilusão. Porém, pensando um pouco mais sobre a obra, concluí que talvez despertar esse sentimento confuso, controverso, tenha bastante a ver com Capris, um país cheio de controvérsias, dualidades e narrativas em rota de colisão.

A edição tem um formato confortável para a leitura, capa dura e conta com a revisão e edição da Páginas Amarelas HQ’s, além da editora Texugo, tocada por Wagner. Vale lembrar também que a obra recebeu apoio do PROAC, programa do estado de São Paulo que viabiliza projetos culturais nas mais diversas áreas.

“Todas a pedras no fundo do rio” é uma costura muito bem elaborada de realidades e ficções perfeitamente verossímeis, para nosso azar. Wagner Willian acerta em cheio na miséria do ser humano e nas peças podres que colocaram o nosso Capris “real” neste eterno jogo desigual de avanços pequenos e retrocessos escabrosos.

Classificação:

Avaliação: 3.5 de 5.

AUTOR: Wagner Willian
EDITORA/EDIÇÃO: Texugo/Páginas Amarelas HQ’s PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 208

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