O tempo ainda é algo que pouco conhecemos. Mesmo com um relógio na parede ou a noção de divisão em dias, meses e anos, o fenômeno do tempo não é completamente compreendido pela ciência. Talvez as sociedades contemporâneas errem justamente onde os povos originários acertaram, na forma de pensar o tempo e não em como “capturá-lo”. “Haya e o tempo“, de Janaína de Luna e Pedro Cobiaco, é uma fábula sobre a relação que temos com o tempo e como ele transforma todas a coisas.

Sinopse: De cem em cem anos, uma criatura se ergue em meio à maior floresta do mundo. Ela tem uma missão: atravessar a mata de um lado ao outro, carregando o tempo do mundo em suas costas. Se ela falhar, o tempo para. Para protegê-la, um milenar povo formado por guerreiras indígenas deve eleger duas escolhidas através de um ritual. Mas, desta vez, os velhos espíritos fizeram uma escolha inusitada.

No seio da grande floresta, uma nação indígena composta por mulheres guerreiras, é encarregada de prover duas guardiãs para o tempo durante uma viagem que ocorre a cada cem anos. Na noite do ritual, uma surpresa, Haya e Kurema são as escolhidas pelos deuses para realizar a escolta. Uma jovem desajeitada e uma idosa guerreira. Uma com tempo de sobra e outra com pouco tempo.

Haya é a heroína que prefere cuidar das crianças menores a sair em uma aventura. Já Kurema se martiriza por erros do passado e está certa de que seu tempo já passou. Ambas são hesitantes e a história aqui é uma jornada sobre elas e como encaram seus papéis no mundo.

No decorrer das belas páginas de “Haya e o tempo”, a caminhada das protagonistas e da criatura do tempo é entrecortada por pílulas narrativas com a voz da natureza personificada em uma pedra. Estas páginas rendem as melhores sequências da obra, apresentando analogias com a origem da vida, do tempo e as transformações que ele impõe ao mundo e seus habitantes.

Janaína e Pedro escolhem narrar sua história sem se aprofundar em culturas de nações indígenas reais. Ainda assim, é possível reconhecer elementos claramente inspirados na realidade dos povos brasileiros como os padrões de pinturas corporais, grafismos e adornos. A presença de animais que habitam o território brasileiro e até os conceitos apresentados acerca do tempo e do mundo, indicam inspiração nas cosmogonias indígenas e no Brasil. Esta é uma escolha acertada, pois evita o erro que muitos autores cometem, o de criar ficções sem propriedade ou sem consultoria especializada, utilizando a voz dos povos ou indivíduos representados na obra de maneira irresponsável e, às vezes, contraditória ou desrespeitosa.

Ainda nessa linha, a dupla vai além e apresenta arquétipos de figuras que é possível reconhecer facilmente. O trabalhador braçal que foi violentado pelo mundo e teve sua moral corrompida pela promessa de riqueza. O “gringo” sem escrúpulos, que age sob a lógica imperialista que guiou toda a sua vida.

A HQ é uma grata surpresa. Mesmo longe de ser desinteressante ou pobre, em algum momento ela pode ser previsível. É aqui que o texto faz diferença. Os diálogos das protagonistas com a natureza são bonitos e completam suas jornadas rumo ao amadurecimento e ao perdão de si mesma. além disso, o roteiro abandona o lugar comum quando mostra a jovem inexperiente ensinando a anciã sábia.

“Haya e o tempo” é uma bela aventura sobre como enxergamos o mundo e nós mesmos, atravessados por esta entidade que toca tudo com seus longos braços, o inevitável tempo. As cores e o traço dão o tom suave que complementa bem a narrativa poética da HQ. Aqui o leitor encontrará uma boa experiência visual com um texto refinado e maduro.

Classificação:

Avaliação: 3.5 de 5.

AUTORES: Janaína de Luna e Pedro Cobiaco
EDITORA/EDIÇÃO: Mino PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 112