No final de fevereiro, um título chamou a atenção de todos que acompanham os videogames, porém de forma negativa, inclusive já prevista. O jogo é Metal Gear Survive, um spin-off da série clássica da Konami, sendo este o primeiro sem a participação do criador da franquia, Hideo Kojima. Por conta disso, o jogo possui características pouco familiares para os fãs de Metal Gear, provocando muita polêmica, mais que apenas a qualidade duvidosa do produto final. As diversas repercussões me fizeram questionar novamente sobre a forma como enxergamos a identidade de uma franquia.

O caso Metal Gear Survive

Como falei no início, a atenção negativa do jogo era prevista, muito por conta dos conturbados eventos antes e depois do lançamento de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain em 2015. Hideo Kojima, que havia trabalhado há quase 30 anos com a série, passou a ser desacreditado do material promocional do jogo, tal qual o nome de seu estúdio. Relatos anônimos afirmaram que Kojima e sua equipe passaram por restrições de trabalho. Phantom Pain lançou e foi bem sucedido apesar das polêmicas. No final de 2015, Kojima foi impedido pela própria Konami de participar do evento The Game Awards, e Kiefer Sunderland, que interpretou o protagonista do jogo, foi quem recebeu as premiações naquela noite. Após essa sucessão de acontecimentos, Hideo saiu da Konami e restabeleceu seu estúdio, a Kojima Productions.

Metal Gear Survive

Metal Gear Survive foi anunciado em agosto de 2016, apresentando uma dimensão paralela onde o jogador enfrenta zumbis. Os jogos spin-off naturalmente se desviam dos elementos originais de uma franquia, a própria série Metal Gear possui títulos que fogem da trama principal, o Rising Revengeance e dois jogos Acid. Títulos spin-off ou que recomeçam uma franquia são palcos para descontentamento dos fãs mais eufóricos. O contexto nesse episódio é maior que a raiva de fãs pela “blasfêmia” a Hideo Kojima, o qual é constantemente elevado a figura de um deus dos videogames. Metal Gear Survive é, nada mais nada menos, a Konami entrando com mais força nesse seleto grupo infame de empresas que utilizam más práticas na hora de produzirem seus jogos.

A Konami deixou de produzir jogos com grandes orçamentos para buscar soluções mais baratas e lucrativas, seu foco passou a ser os jogos mobile. Essa nova conduta da Konami ficou evidente em Metal Gear Survive, o jogo tem material aproveitado de The Phantom Pain, possui um mundo aberto com missões repetitivas tanto na campanha quanto no multiplayer. O que nos é apresentado é um jogo com história aquém do nível da série, o Rising também é um spin-off, porém com um bom enredo e com mecânicas até inovadoras pro seu gênero, enquanto o Survive utiliza o nome Metal Gear para garantir vendas, de forma mais clara, utiliza microtransações abusivas onde o jogador precisa pagar dez dólares para ter um novo espaço de criação de personagem.

Microtransações em Metal Gear Survive, 1150 pontos equivale a 9,99 dólares.

Na maioria das análises, entrou em pauta a seguinte frase: “Se esse jogo tivesse outro nome, seria melhor recebido”. Essa é uma frase que acompanha alguns jogos fracassados de franquias fortes, mas repito aqui, o caso de Metal Gear Survive vai além de “profanar” a franquia criada por Hideo Kojima, é mais um episódio em que uma empresa de games deixa de lado a identidade de uma obra para visar um produto medíocre, com o nome de peso de uma série famosa, para ter uma fatia de lucro garantida.

Mas afinal, o que é essa tal identidade?

Quando fui atrás de informações na época do lançamento de Metal Gear Survive, vi alguns comentários como: “o pessoal fica revoltado mas nem jogou” ou “Resident Evil 7 mudou bastante e ninguém reclamou”. Baseando-se nessas duas falas, acho que podemos montar um raciocínio.

Diferente de outras mídias, no videogame se exige a participação ativa do jogador, fora que comprar um jogo novo é bem mais caro que comprar um livro ou o ingresso de uma sessão no cinema. Com o tempo, quem é habituado a jogar adquire vivência o suficiente para avaliar em quais jogos melhor investir seus duzentos reais e suas horas de engajamento, que algumas vezes podem chegar a casa das centenas. Qualquer fã de uma franquia longa como é Metal Gear sabe que tipo de experiência espera encontrar, sem precisar jogar o jogo de fato, basta se deparar com elementos totalmente desconexos para surgir a desconfiança. Fora isso, existe a marca negativa deixada pela Konami, a identidade que a empresa tinha de fazer jogos de qualidade em sequência ficou na década passada.

Em relação ao Resident Evil 7, concordo com quem diz essa frase: “ele é mais Resident que muitos que tem aí”. Os videogames possuem um privilégio que as outras mídias não possuem, no que diz respeito a manter a identidade de uma franquia. Um jogo novo de uma série pode alterar sua temática, mantendo a essência da jogabilidade, ou o contrário pode ocorrer. Dependendo do ponto de vista dos fãs, pode agradar ou não. No caso de Resident Evil 7, a mudança principal foi a perspectiva do jogador, que controla o personagem em primeira pessoa. Os elementos de terror, sobrevivência e exploração têm mais força de remeter a essência da franquia do que uma mudança de câmera tem de mudar a identidade.

Resident Evil 7

No caso de franquias que podem mudar sua temática e manter elementos de gameplay, cito a série Far Cry, com dois jogos em específico: Blood Dragon e Primal. O Blood Dragon é uma expansão do terceiro jogo, e pode-se dizer que é uma experiência completamente diferente, com temática dos anos oitenta que serve como paródia de um filme de ação da época. As mecânicas e o motor gráfico são os mesmos, mas como a mudança de estética faz toda a diferença! O Far Cry Primal é um jogo que se passa entre o período Paleolítico e Neolítico, uma temática totalmente diferente dentro da franquia. Apesar de algumas mecânicas diferentes, a jogabilidade em si segue o padrão, o que foi na verdade considerado ponto negativo pelos críticos.

Far Cry 3: Blood Dragon e Far Cry Primal

Cada franquia, não só nos videogames, tem seu conjunto de elementos que a diferencia no meio dos inúmeros produtos culturais. Se voltarmos ao Atari, é comum encontrarmos jogos com nomes simples, o jogo de basquete era chamado só de basquete, o de golfe só de golfe e assim por diante. Com o advento dos videogames e mais desenvolvedoras entrando no mercado, os jogos com temáticas parecidas tinham que se diferenciar, desde o nome à elementos visuais, sonoros e principalmente a jogabilidade. Se você como jogador queria uma outra opção além Realsports Soccer do Atari, existia o Pelé’s Soccer, com sua própria identidade.

Uma das “melhores” atuações do Pelé

Na indústria cultural é muito comum que um produto, ao criar uma tendência, faça com que outras empresas busquem utilizar desses elementos para seguir a onda do sucesso. O grande exemplo disso é Dark Souls: seus elementos cativaram um fatia de fãs apaixonados, e claramente algumas empresas buscaram atrair esse público, hoje se fala até em um novo gênero, chamado de Soulslike. Nos últimos anos vimos alguns jogos utilizando elementos da franquia Souls, com mudanças na temática, na jogabilidade e até mesmo na perspectiva, do 3D para o 2D. Alguns foram tímidos em sua recepção e outros foram consagrados, por mostrarem que há um caminho diferente a ser percorrido.

Ordem de cima para baixo, da esquerda para a direita: Dark Souls, Lords Of The Fallen, Salt And Sanctuary, The Surge, Hollow Knight e Ni-Oh.

Mesmo com a multiplicação de jogos similares, um Resident Evil não perde seu peso em seu gênero, nem Dark Souls e nem mesmo Metal Gear. Em nenhum momento durante o post utilizei a palavra “original”, mesmo que pudesse se encaixar no texto. Entrar no mérito da originalidade seria percorrer outro tema ainda mais complexo. É quase que impossível no mundo tão conectado como o de hoje encontrar algo 100% original, a menos que você veja o produto cultural de uma tribo super isolada.

Nos videogames, Horizon Zero Dawn é um exemplo de produto que pegou elementos de vários outros jogos e os encaixou em um universo diferente, isso faz com que seja possível enxergar uma identidade própria na obra. Em um novo jogo anunciado, ao ver um robô com aquela estrutura peculiar, o visual das tribos, a estética dos cenários, torna-se fácil se remeter ao mundo da Aloy. Em outro ponto, temos a franquia The Legend Of Zelda, no alto de suas três décadas de vida, que ao recriar a sensação de aventura de seus primórdios ao mesmo tempo que utilizou elementos de outras séries, revitalizou sua marca com Breath Of The Wild, culminando em um grande sucesso do considerado por muitos o melhor jogo de 2017.

The Legend Of Zelda: Breath Of The Wild

Afinal, qual a identidade de uma franquia? Seja em videogame, filme, quadrinho ou série de TV, a identidade pode ser um conjunto de elementos que faz com que uma obra seja notável em sua mídia, ou pode ser apenas um detalhe, bem discreto, que entra na sua vida como uma memorável recordação, e toda vez que o vê em uma nova obra, você sente aquele arrepio e pensa: “isso vai valer a pena”.