Desde o anúncio de mais uma adaptação live-action realizada pela Casa do Mickey de uma das animações que moldaram nosso imaginário infantil, 101 dálmatas (1961), um fato curioso veio à tona: a exemplo de Malévola (2014), que reintroduz a então vilã de A Bela Adormecida sob uma luz heroica, o filme não focaria na fuga dos adorados cãezinhos das garras de uma magnata obcecada por casacos de pele, e sim na própria, Cruella De Vil, interpretada por Emma Stone.

As orelhas se levantaram aí: tentaria a Disney humanizar o inumanizável? Tentariam justificar a perversidade da mais famosa torturadora de animais que a mídia já nos apresentou? A resposta, não sem suas complicações, é não. O que temos é uma personagem totalmente repaginada, livre do pecado capital da tortura animal. E, por isso, houve quem desgostasse do filme por este descaracterizar a personagem.

Cruella, entre méritos e tropeços, certamente prova que não dá para agradar gregos e troianos. No entanto, agradou um grupo de gregos em específico, e eis o motivo de eu vos escrever este texto: o filme foi ovacionado por grande parte da comunidade queer.

Ao tirar da vilã sua vilania, sua crueldade registrada e sua piteira famosa, o filme mantém em Cruella as nuances de uma personagem ambígua, que transita entre os limites da moralidade normativa, e foi essa palavra, transita, que justificou o apelo que a releitura faz à comunidade queer. Não que seja um blockbuster LGBTQIA+ (a Disney não é tão corajosa), mas o enredo procura redimir tanto a vilã quanto o uso maligno que o estúdio fez durante anos do queer coding.

Em uma explicação bem simplista, queer coding é a prática que veículos de mídia adotam para representar personagens dessa comunidade, sem deixar essa associação explícita. Personagens codificados exalam características queer, transitando livremente entre esferas de comportamento tipicamente associadas ou ao masculino, ou ao feminino. Essa liberdade, no entanto, é o grande pecado dessas personagens, frequentemente postas sob o signo da vilania.

A excentricidade, o exagero e a não-conformidade com os códigos sociais (o que inclui os comportamentos de gênero) foram, por anos, características associadas a vilões e vilãs, símbolos do mal nessas histórias. Pense em como Hades, Scar e Jafar soavam afeminados em seus planos maquiavélicos, ou como Úrsula e a Rainha Má, mulheres ambiciosas, inevitavelmente eram vistas como perigosas por buscarem exatamente aquilo que seus reis conseguiam tão naturalmente. A perversidade era parte desses personagens queer, que inevitavelmente encontravam a destruição nas mãos de seus heróis e heroínas, personagens que reforçavam justamente a norma social (e usavam bem menos maquiagem).

A infelicidade, portanto, também era o resultado codificado para os que adotavam a subversividade queer como sua forma de expressão no mundo, a menos que cedessem às pressões de uma sociedade que os ameaça. Conformidade sempre foi a moral dos contos de fadas clássicos, que se veem agora confrontados por discursos contemporâneos que procuram exaltar exatamente aquilo que, durante décadas, estúdios como a Disney procuraram demonizar.

Não se engane, a Disney não tem a menor intenção de ser subversiva. O estúdio só está cedendo à única necessidade que rege o mundo capitalista: consumo. Quanto mais os movimentos sociais em defesa da causa feminista e LGBTQIA+ confrontam a sociedade sobre a forma que esta encara a complexidade do gênero, mais esses grupos ganham espaço e se tornam o alvo de produtos e serviços específicos produzidos por empresas como a Disney.

Em um mundo onde a cultura queer passa de temida à celebrada, o mesmo acontece com as personagens que codificam essa cultura. Quando vi a Malévola de Angelina Jolie, estranhei muito o que fizeram com a personagem, pois eu esperava a Senhora de Todo o Mal, a Fada Sombria, e recebi uma nova visão acerca de maternidade. Tive a mesma expectativa com a interpretação de Emma Stone, que nos oferece uma punk rebelde com visão artística singular e uma missão de vingança.

Agora, nós, pessoas queer, podemos amar personagens como a nova Cruella sem culpa alguma, pois ela é purgada da maldade e continua vestida para matar. Sua excentricidade é o que a torna única, preservada do jeito que sempre foi, mas desassociada de uma imagem maligna feita para nos deixar desconfortáveis com nós mesmos. Podemos experimentar a liberdade com ela, sem nos sentirmos monstruosos por isso.

O que temos em histórias assim não é a destruição de nossa infância. O que temos é a fábula em sua forma mais pura: novas lições para novas crianças de um novo tempo. Talvez, em 2021, em pleno Mês do Orgulho, não precisemos mais da femme fatale que assassinava animais em nome da vaidade. Caso precise dela, talvez esse filme não seja para você, assim como este texto não é escrito para que pessoas fora da cultura queer entendam nossas questões.