Responda rápido: quando foi a última vez que você assistiu a um programa infantil na televisão aberta? Talvez você não tenha reparado que, nos últimos anos, a veiculação de programas infanto-juvenis pela TV aberta brasileira despencou. O descompromisso com a programação infantil, direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente , mostra que grandes empresas e o próprio sistema de ensino ainda não conseguem enxergar os meios de comunicação como ferramentas educacionais.

O Brasil já produziu, exportou e tem produtos que são referência mundial para o público infantil. Castelo Rá-Tim-Bum (1994) é, talvez, o maior exemplo de clássico infantil brasileiro, tendo, inclusive, sido remontado em uma exposição de quase um ano no Memorial da América Latina, com um enorme sucesso de público. Além dele, tivemos duas versões d’O Sítio do Pica-Pau Amarelo que também marcaram gerações. E por que não se fala mais em entretenimento infantil?

Por que o mercado deixou de ser lucrativo. Desde 2014, é proibido que haja material publicitário focado somente no público infantil. Se antes eram os comerciais de produtos infantis licenciados que aumentavam consideravelmente os lucros das emissoras, agora a proibição considera abusiva esse tipo de campanha. Um exemplo? A TV Globinho, um dos últimos resquícios de programação infantil da Globo, foi cancelada para aumentar o tempo de exibição do “Encontro com Fátima Bernardes” que, convenhamos, tem muito mais espaço no programa para propagandas, os tais merchans.

Sem acesso a produções televisivas de qualidade, as crianças crescem ouvindo que os meios de comunicação não são formas de se obter conhecimento, principalmente no que diz respeito à televisão. Embora pesquisadores como Paulo Freire e Jesús Martín-Barbero defendam que escolas e famílias devem entender a importância do aprendizado fora dos livros e do ambiente escolar e que crianças tenham contato com veículos comunicacionais, não é isso que acontece.

Enquanto a lógica do lucro se sobrepõe massivamente, não há espaço para o potencial educativo da televisão. Como se vai contar histórias para as crianças se só enxergamos o erudito como cultura e conhecimento?

“A Volta ao Mundo em 80 Dias” e como é difícil contar histórias sobre o futuro

Capa de uma edição de “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, em português

Conhecido como o pai da ficção científica, o escritor francês Júlio Verne tem uma das obras mais famosas de todos os tempos. Seus livros previram uma série de invenções e acontecimentos que só seriam realidade décadas depois, como o submarino Nautilus, de Vinte Mil Léguas Submarinas (1870) e a chegada do homem à Lua, em Da Terra à Lua (1865) que, inclusive, inspirou um dos filmes mais famosos do início do cinema, Viagem à Lua (1902), de George Meliès.

Um de seus livros mais famosos é A Volta ao Mundo em 80 Dias (1872), que conta a história de Phileas Fogg e seu assistente, Passepartout. Após terem apostado que seria possível contornar o globo em 80 dias, passam a ser suspeitos por um roubo de banco em Londres e perseguidos pelo inspetor Fix durante todo o percurso.

No livro são abordados temas como revolução industrial e modernização dos meios de transporte, desigualdade social, diversidade cultural, abuso policial e papéis de gênero. Em uma das partes mais sombrias do livro, Fogg e Passepartout salvam uma moça, Aouda, que seria queimada viva em Calcutá, na Índia. O motivo? Segundo crenças religiosas, a mulher, quando viúva, deveria acompanhar o marido morto.

Como é difícil contar histórias importantes para crianças

Roser Capdevila, autora de As Trigêmeas (Fotografia: Albert Bertran/El Periodico)

As Trigêmeas é um desenho catalão que foi transmitido por diversos canais abertos brasileiros entre os anos 90 e 2000. Mais uma vez vou supor que você esteja curioso em saber algo: por que esse desenho é tão especial? Bem, As Trigêmeas adapta clássicos da literatura mundial ao público infantil. Os episódios da obra vão de Os Três Porquinhos a Oliver Twist e a biografia de Vincent van Gogh. Tudo adaptado para o público de crianças entre 6 e 10 anos.

Ana, Teresa e Helena são as irmãs que, muito inteligentes e curiosas, acabam sendo “castigadas” pela – icônica, devo dizer – Bruxa Onilda em todos os episódios. Em cada castigo elas são enviadas para uma história diferente e, enquanto a Bruxa sempre tenta boicotá-las, as três acabam conseguindo resolver os dilemas de cada história e, muitas vezes, interferem em seus finais.  Obviamente, as adaptações não mostram, explicitamente, aspectos mais adultos das obras. Mesmo assim, o desenho permanece com várias camadas, o que garante que pessoas de todas as idades enxerguem sua complexidade. As adaptações vão muito além de infantilizar um clássico.

Em As Trigêmeas e A Volta ao Mundo em 80 Dias, diferente do livro de Verne, a história se inicia já no século 20. A volta ao mundo, na verdade, é uma corrida da Coroa inglesa e as três irmãs são mandadas pela Bruxa Onilda para acompanhar Fogg e o taxista durante o caminho. Passepartout é representado pelo taxista, empregado de última hora por Fogg, e a Bruxa Onilda, que tenta sabotá-los a todo momento, o inspetor Fix.

Ao contrário dos demais episódios do desenho, neste é possível ver personagens de diversas outras obras já abordadas na série. Como é uma volta ao mundo, os roteiristas decidiram por usar os locais por onde passam as meninas para mostrar como estão outros personagens depois de conhecerem as três irmãs, como Oliver Twist e Cleópatra. No entanto, a adaptação mais bonita, na minha opinião, foi a da história de Aouda, a moça que seria queimada viva. A personagem é apresentada de forma pueril, como uma moça solitária que oferece ajuda aos viajantes. Quem já leu o livro, mesmo mais velho, consegue entender que há algo muito intenso na história dela, ainda que o desenho nunca mostre.

Livros não são as únicas formas de se contar histórias

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2014, do mesmo ano da proibição da publicidade infantil, o tempo médio de exposição diária de uma criança à televisão era 1h20min maior que o tempo que a mesma permanecia na escola. Ainda segundo a mesma pesquisa, 97,1% dos domicílios brasileiros possuem um aparelho de televisão, sendo que apenas 32% têm acesso à televisão paga, onde está concentrada a maioria esmagadora dos produtos infantis.

Quando se nega o poder que os meios de comunicação exercem sobre a criança, se nega a ela, também, a oportunidade de desenvolvimento crítico. Não é proibindo que se assista à televisão que as crianças se tornarão mais estudiosas, inteligentes e muito menos, críticas. Como criticar algo que lhe foi negado e afastado? Famílias, escolas e as próprias emissoras de televisão têm negado tudo isso às crianças. E o medo da televisão é nocivo. Existem bons produtos que não são reconhecidos, e As Trigêmeas, para mim, é um dos grandes exemplos disso. Assim como outros desenhos, inclusive produções nacionais atuais, que ficam restritos à televisão paga.

Seria bem chato se eu não dissesse que escolhi falar desse desenho porque fui uma das crianças atingidas pelo bom potencial educativo da televisão: foi assistindo a As Trigêmeas que comecei a me interessar por literatura e, bem, é por isso também que esta coluna existe. Amo livros porque amava assistir à televisão. E porque, quando era criança, a televisão parecia se importar mais. Ou, pelo menos, parecia porque lucrava mais com publicidade infantil.