Este texto vai ao ar exatamente no dia seguinte ao Dia Internacional da Mulher, 8 de março. A coluna se posiciona em relação aos direitos da mulher em praticamente todos os posts, então não pensem que isso se trata de algum tipo de efeméride. É o estado natural da coluna Vírgulas Cardeais.

Assim, é importante salientar que esta é de uma coluna de literatura, sim, com viés feminista. Não é uma obrigatoriedade, mas na grande maioria dos posts esse posicionamento político ficará evidente. Não se trata de panfletagem ou partidarismo, é ver produtos culturais de forma crítica e contextualizada. Ontem, mulheres de mais de 170 países saíram às ruas para gritar ao mundo suas reivindicações, e não é um comentário ignorante na internet que vai parar uma luta tão grande e tão plural.

Isso tudo explicará a escolha do livro a ser comentado nessa semana, um dos romances já icônicos do que podemos chamar de literatura feminista. “Hibisco Roxo” (2003) é o primeiro romance escrito por Chimamanda Ngozi Adichie, escritora e professora universitária nigeriana. Eu sugiro que corra atrás da obra dela se acha que feminismo é frescura, inclusive vendo seu TEDx, depois publicado como livro. Inclusive, se você já a conhece, saiba que uma das melhores notícias da última semana é que existe a possibilidade de Lupita Nyong’o produzir um seriado baseado em “Americanah”, outro livro da autora.

Antes de começar a discorrer sobre o livro, outro esclarecimento: não sou lida como negra e nem me considero negra. Sendo assim, não posso opinar sobre aspectos como racismo e etnias africanas, que são bastante presentes na obra. É por isso que vou me deter a explorar, principalmente, a questão da violência doméstica desacreditada ou, ainda mais frequente, silenciada.

Os silêncios que lemos

Capa da edição de “Hibisco Roxo” usada como referência

“Hibisco Roxo” conta a história de Kambili, uma adolescente de 15 anos, que narra o livro em primeira pessoa. Sua família é composta por sua mãe, seu pai e seu irmão, Jaja. A fortuna da família advém do trabalho e prestígio de seu pai, Eugene, que é visto como um dos maiores benfeitores da região por ter sido um dos poucos donos de jornais progressistas do país, que sempre foi uma resistência aos governos ditatoriais nigerianos.

A família tem uma vida de luxos e Eugene é reverenciado em praticamente todos os lugares onde aparece. Há tanto dinheiro que parentes de Eugene ainda insistem para que ele tenha uma segunda família, o que ele sempre recusou. O que parece ser uma boa ação de Eugene é rapidamente explicada  logo no início do livro, onde percebe-se uma imensa ojeriza de Eugene pelos costumes e religiões africanas, sendo ele próprio um católico fundamentalista.

Toda a organização familiar gira em torno do pai. Todos dependem dele, e é ele quem define detalhadamente os horários, os padrões, as roupas e tudo da vida dos filhos. A mãe, você verá, é silenciosa. No início, todos os personagens são silenciosos diante de Eugene. No início, provavelmente você não sentirá o peso desse silêncio. Assim como Kambili também não tinha ideia.

Sem entrar em muitos detalhes, uma vez que o que será dito a seguir está, inclusive, na contracapa do livro: Eugene é um agressor doméstico. A primeira cena de agressão demora muito a aparecer graficamente, mas você tem certeza, com poucos capítulos, apesar de toda a sutileza da história, que as agressões acontecem em meio ao silêncio.

“Não sabia o que ele ia fazer comigo. Era mais fácil quando eu via o galho, porque podia esfregar as palmas das mãos e retesar os músculos das panturrilhas para me preparar” – Kambili, no trecho da contracapa de “Hibisco Roxo”

Para todos ao redor, tudo parecia normal. Não só normal como um modelo de família a ser seguido. Kambili, inclusive, acreditava que a rigidez e os abusos de seu pai eram, na verdade, formas de proteção. Tudo muda para Kambili com a chegada de sua tia Ifeoma, uma professora universitária viúva, que vem para o Natal com os dois filhos para a casa de férias de Eugene.

A convivência com tia e primos faz com que Kambili e Jaja criem consciência do quão abusiva são suas vidas ao lado do pai, de todas as formas imagináveis. Como é uma narrativa em primeira pessoa, é a percepção de Kambili que relata a proximidade das relações, logo, há relações importantes que ficam em segundo plano durante boa parte da história, como a de Ifeoma e a mãe de Kambili.

Os silêncios que ignoramos

Maria da Penha Maia Fernandes, a vítima de violência que deu nome à Lei Maria da Penha. Devido às sucessivas agressões do então marido, Maria ficou paraplégica. Hoje, é fundadora e líder do Instituto Maria da Penha.

O velho  “em briga de marido e mulher não se mete colher” faz vítimas todos os dias. Para quem está sofrendo, uma denúncia anônima pode significar a liberdade. É comum que as vítimas não tenham coragem de denunciar e, por isso, muitos dados são subnotificados. Em 2017, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM), foram feitas 6.125 denúncias de agressão física no Amazonas, um número 14% maior que o ano anterior.

No Brasil, segundo levantamento dos dados de 2017 feito pelo G1, uma mulher é assassinada a cada duas horas. Do total de homicídios, 21% são enquadrados como feminicídio, um agravante do crime de homicídio, que ocorre quando a vítima morre somente pelo fato de ser mulher. Situações em que a mulher é morta porque é vista como propriedade pelo parceiro, por exemplo.

A subnotificação, que ocorre quando pesquisas apontam que os números reais são muito maiores do que o número de denúncias, se deve a muitos fatores. Um deles, a falta de eficácia de grande parte das Delegacias da Mulher, como você pode ler neste ou neste artigo.

Faltam pessoas para “meter a colher”.

Os silêncios que se cruzam

E “Hibisco Roxo” é exatamente sobre alguém que interveio em um convívio familiar para libertar todos ali de um agressor. Ifeoma, irmã de Eugene, mostra aos sobrinhos que não eram felizes e que a violência não era uma forma de educação. Era só violência, machismo e fanatismo religioso. Por mais que todos o vissem como heroi, ele jamais o seria dentro de casa, ainda que ninguém além delas acreditasse nas atrocidades que ele cometia.

Durante tempo que passam com Ifeoma, na cidade universitária de Nsukka, Kimbili e Jaja despertam, inclusive sobre as próprias vidas e questionamentos. Por causa da rigidez do pai, os irmãos tinham seus horários milimetricamente calculados, com informações precisas sobre o que poderiam e não poderiam fazer. Na casa da tia, no entanto, eram livres.

A liberdade da mãe era muito mais difícil. Por mais que ela quisesse se afastar do marido, tinha muito medo. Um medo que é justificado durante praticamente todo o livro, e pelo qual a mãe se vê anestesiada. Para completar, Ifeoma e o próprio Eugene são considerados “subversivos” pelo governo da época, que os persegue por representarem resistência intelectual. Ela, na universidade, ele, no jornal.

O cerco das autoridades também vai se fechando sobre os dois, o que obriga Ifeoma a cogitar a possibilidade de ir embora da Nigéria com os filhos. Eugene vê diversas tentativas de assassinato de pessoas relacionadas ao seu jornal, mas não quer sair de onde está. Assim, além de contar a história de uma família repleta de abusos, conta-se o recorte de um país também repleto de abusos.

Caso vá ler “Hibisco Roxo”, saiba que vai doer. Uma dor que está presente aonde quer que você vá, da qual muita gente não consegue se livrar se não tiver mais alguém para ajudar. Mais importante ainda, é um livro para descobrir a si mesma e entender onde você está inserida. É um livro silencioso justamente para acabar com silêncios.

Em caso de violência doméstica, ligue 180.