Engana-se quem pensa que a dependência do ser humano em relação às tecnologias é exclusividade do tão economicamente disputado nicho dos millennials. As tecnologias sempre foram extensões e aperfeiçoamentos de nossos corpos ou, pelo menos, tentaram ser. No entanto, em um mundo cada vez mais visual em relação às mídias, parece que falta visão. Para o que se olha hoje?

Bem, segundo o Digital News Report 2017, do Instituto Reuters (Oxford), 57% dos olhos brasileiros olham para o feed de notícias do Facebook para se informar. Fica pior: 46% dos brasileiros diz se informar através do WhatsApp que, por sinal, também faz parte do conglomerado de empresas gerido por Mark Zuckerberg, junto com o Instagram.

Muita gente não sabe que os feeds do Facebook são completamente manipulados para facilitar ações de marketing. Os dados de usuários, coletados pelo seu histórico de buscas na internet, vídeos assistidos, curtidas e amizades são, talvez, o bem mais precioso que se pode ter atualmente. E é com essa coleta de dados para anunciantes que o Facebook e outras redes sociais se mantêm. E, ao mesmo tempo em que isso pode lhe ajudar a conseguir uma promoção boa, também pode ter manipulado os resultados de eleições por todo o mundo. Incluindo a vitória surreal de Donald Trump.

Por receber informações demais, sem saber como filtrá-las ou se perguntar o porquê de terem aparecido ali, o usuário acomoda-se a uma “bolha informativa”, que nem ao menos sabe que existe. Acha que o que aparece para si é o mesmo que aparece para todos. Não é. Já não se tem noção do que acontece fora dessa tal bolha e, assim, torna-se cada vez mais difícil de sair. De tanto se acomodar em ver aquilo que interessa a si, fica-se cego.

“Cegos que vendo, não vêem”

Capa da edição de “Ensaio sobre a Cegueira” usada como referência

 “Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.”

– trecho de “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago

José Saramago é, até hoje, o único lusófono vencedor do Nobel de Literatura. É autor de “Ensaio sobre a cegueira” (1995), livro que retrata um mundo tomado por uma epidemia de “cegueira branca” e como ela leva ao caos generalizado. A cegueira começa de forma aparentemente repentina, quando o primeiro cego espera a abertura de um semáforo. Assim, todos que mantém contato com ele são tomados pela mesma cegueira, que se espalha rapidamente.

José Saramago, autor de “Ensaio sobre a Cegueira” e prêmio Nobel de Literatura

Todos os acometidos pela tal cegueira são enviados para uma espécie de quarentena, na qual são expostos a condições cada vez mais desumanas, já que o número de infectados aumenta sem controle. Uma única pessoa consegue enxergar todo o caos que se instaura: a mulher do médico oftalmologista que tenta tratar o primeiro cego. Ela mente para as autoridades e consegue ir para a quarentena junto com o marido. No entanto, em diversos momentos, percebe-se que ela preferiria estar cega a ver o estado de barbárie onde estão inseridos.

O livro, como pode ser lido na citação acima, tem uma lógica de pontuação e divisões muito próprias, que transmitem ao leitor uma sensação crescente de desespero e claustrofobia. Parágrafos chegam a durar páginas e indicações de diálogos são feitas apenas por vírgulas. Além disso, os personagens não têm seus nomes revelados: são sempre referidos como “mulher do médico”, “médico” e “primeiro cego”, por exemplo. Pode e deve causar estranheza e desconforto a quem lê. “Ensaio sobre a Cegueira” também foi adaptado para o cinema com o filme “Blindness” (2008), dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, com Jullianne Moore, Mark Ruffalo e Alice Braga no elenco.

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”

A “personalização” do fluxo de informações que chega até o feed de notícias, guiada pelos tais algoritmos de empresas como Amazon, Google e Facebook nos cegam. Uma cegueira que funciona para que só vejamos o que, segundo os algoritmos, nós gostaríamos – ou teríamos algum interesse – em ver. Eles decidem. A chance de pessoas que se informam somente por redes sociais tenderem para a polarização de ideias é maior, já que dificilmente terão acesso a outros pontos de vista em seu feed.

A polarização e radicalização de ideias, formuladas só por critérios personalizados demais, acaba contribuindo para um estado de caos generalizado. É o cenário perfeito para se criar notícias falsas: as famigeradas fake news. Com usuários polarizados, que disseminam informação por impulso, é mais fácil compartilhar notícias, que na grande maioria dos casos vêm de sites sem credibilidade nenhuma ou, às vezes, até sem a checagem devida pelos veículos de comunicação. Sem falar dos 46% de brasileiros que se informam via WhatsApp, repassando correntes que, de tão absurdas, viram meme.

Mar Zuckerberg durante seu depoimento no Congresso estadunidense

A manipulação de dados de redes sociais para influenciar decisões democráticas foi tão nociva que levou o próprio Zuckerberg a ser sabatinado pelo Congresso estadunidense nessa semana.  O trabalho dele, como fundador e CEO, é de apaziguar os ânimos, e conseguiu: as ações do Facebook tiveram o maior crescimento em dois anos, após seus depoimentos no Congresso.

Tão misteriosa quanto a epidemia de cegueira branca de Saramago é a forma como os dados de usuários de redes sociais são utilizados. As bolhas de informação, construídas a cada passo do usuário na internet, causam cegueira: uma cegueira branca. Cegos que vendo, não vêem os outros. Vive-se sem ter noção alguma das distâncias que separam uns dos outros. As redes sociais são boas para eliminar distâncias físicas mas, para usá-las da melhor maneira, é necessário saber que para enxergar é necessário discutir. Sem visões plurais, nunca se terá real noção da própria barbárie.

A imagem em destaque neste post é de Mark Zuckerberg durante depoimento no Senado estadunidense, de autoria de Leah Millis/Reuters.