É comum, apesar de absurdo, ouvir que “ideologia de gênero não pode ser ensinada nas escolas porque ensina as pessoas a serem promíscuas”, ou frases afins. Por que é tão difícil compreender o que é gênero e aceita-lo como uma das milhões de variáveis que compõem a natureza humana?

Sou mulher branca cis*, não posso falar sobre a vivência LGBT. No entanto, é importante ressaltar o dado de que o Brasil é o país que mais mata transexuais e transgênros no mundo, segundo a ONG Transgender Europe,  cujo o exemplo recente de maior repercussão foi o assassinato da ativista Matheusa Passarelli, que se identificava como não-binária.

No entanto, e a partir daqui posso falar com propriedade, violência ligada ao gênero não está presente unicamente no cotidiano de quem é transgênero, embora seja absurdamente mais letal e cruel para estes. A violência de gênero começa com a subjugação do gênero feminino em relação ao masculino. É uma questão que perpassa a grande maioria das sociedades, e é de fundamental importância que todos saibam que, sim, sua identidade de gênero pode ser determinante em muitos aspectos da vida em sociedade, embora não devesse.

Muita gente ainda se pergunta o porquê de existir o termo “feminicídio”. Pois bem, ele existe para identificar uma violência de gênero. Feminicídio é matar uma mulher somente pelo fato de ela ser mulher, o que inclui atribuir a ela uma série de noções arbitrárias sobre como ela deveria se comportar segundo seu gênero. Um exemplo é a ideia de propriedade que muitos nutrem em relação ao gênero feminino e que antes era resumida a alcunha de “crime passional”. Ao contrário do que se pode pensar à primeira vista, não é um crime propriamente dito, mas sim um agravante. Um indivíduo é julgado por homicídio com agravante de feminicídio.

“Por que não deixam ela entrar sendo mulher? É só ela aprender a lutar.”. Era assim que eu pensava todas as vezes que assistia “Mulan”(1999), quando era pequena. Chegava a acreditar que aquela realidade já não era mais a mesma, e que hoje eu poderia lutar onde quisesse. Até porque, na minha cabeça, tudo aquilo não passava de uma história inventada.

Não era inventada.

Anos depois, já mais consciente, li “Orlando” (1928), de Virginia Woolf, porque minha professora de inglês tinha citado como seu favorito. E foi lendo “Orlando” que eu comecei a entender os porquês de eu não poder, ou de não quererem que eu faça determinadas coisas. As condenações, que eu nunca tinha sabido o porquê de existirem, se iniciavam sempre no mesmo ponto: ser do gênero feminino.

Os tão falados papéis de gênero.

Mulan e as lebres que correm lado a lado

 

Lutando juntos por doze anos,
eles jamais suspeitaram que Mulan fosse mulher.

Lebres macho gostam de chutar e pisar,
lebres fêmeas têm olhos enevoados e acetinados.

Mas se as lebres correm lado a lado,
quem pode dizer qual é ele ou ela?

– Trecho de “A balada de Mulan”

 

Um pouco mais velha, descobri que “Mulan” era, ou pelo menos tinha chance de ser, uma personagem real. Baseada no poema “A balada de Mulan”, uma canção popular chinesa datada do século VI, a personagem entrou para o imaginário ocidental através do filme da Disney, no final dos anos noventa. Hua Mulan, cuja tradução do chinês é Flor de Magnólia, teria sido uma jovem chinesa que, sendo a primogênita de uma família cujo pai estava doente e velho, resolve lutar no exército em seu lugar.

Por ser parte da cultura oral chinesa, poucas cópias escritas do que seria a canção sobreviveram ao longo do tempo. Existem várias versões para a história de Mulan, advindas de traduções dos manuscritos ou da própria transmissão oral de cada região. No entanto, todas concordam que a jovem teria assumido o lugar de seu pai no exército e lá ficado por vários anos.

Algumas versões apontam para um possível par romântico da jovem, um general do exército, representado na animação por Shang Li, o personagem acidentalmente bissexual que a Disney fez questão de apagar na versão live-action do filme. Há divergências, no entanto, se Mulan permaneceu escondendo seu gênero até o fim de seu tempo como soldado. Segundo o poema, resgatado pelo Epoch Times, seus companheiros a teriam descoberto somente após seu retorno para casa, após 12 anos de convivência.

Lord e Lady Orlando

(…) foi uma mulher que ela amou; e, se a consciência de ser do mesmo sexo teve algum efeito, foi o de estimular e aprofundar aqueles sentimentos que tivera quando homem, pois mil sugestões e mistérios, antes incompreensíveis, agora se aclaravam.
– Trecho de “Orlando – Uma Biografia”, de Virginia Woolf


 Vita Sackville West e Virginia Woolf: “Orlando” seria uma grande homenagem de Woolf para West, cuja intensidade da vida teria inspirado a simbologia da imortalidade da personagem


Conheci Virginia Woolf relativamente nova e, portanto, não entendi muita coisa quando a li pela primeira vez. Um pouquinho mais velha, uma professora de inglês disse que seu livro favorito era “Orlando”, e que não entendia o porquê de as pessoas destacarem “Mrs. Dalloway”. Desafio aceito: li os dois e, realmente, foi de “Orlando” que eu mais gostei.

O livro conta a história de Orlando, um personagem imortal, durante 350 anos de sua vida. Primeiro, como Orlando, um nobre inglês que tentava ser poeta, apesar de não ter apoio da família na era Elisabetana. Após algumas decepções, começa a gastar toda a sua fortuna e vai para Constantinopla. Lá, em meio a uma revolução da população contra o sultão, fica uma semana sem acordar. Então três entidades: Pureza, Castidade e Modéstia se apresentam e, magicamente, o duque Orlando se transforma em lady Orlando.

A partir de então é que Orlando passa a entender e sentir na pele as opressões e pressões que mulheres sofrem na sociedade, passando, com bastante sutileza, por questões de identidade de gênero e sexualidade. Sua aparência andrógena praticamente não se altera ao longo da obra, que é, na verdade, uma grande homenagem a poetisa Vita Sackville-West, um dos mais notáveis romances de Virginia Woolf.

 

Mulan e Orlando, mulheres

Há divergências sobre o que o gênero simboliza para a sociedade e, por consequência, para o indivíduo. Assim como muitos o consideram parte de uma grande forma de opressão e categorização da natureza humana, muitos consideram como parte identitária fundamental de si mesmos. Mesmo com diferenças de pensamento, sabe-se que o gênero, seja como construção social, seja como manifestação pessoal, existe.

Não só existe como tange a todos e, assim, é necessário estudá-lo.

O que acontece, no entanto, é bem diferente. Vou limitar a afirmação a seguir ao Brasil, mas deve se estender a outros países dos quais não tenho conhecimento de causa para afirmar.

Quando a filósofa Judith Butler, uma das maiores referências da polêmica teoria queer, veio ao Brasil no final de 2017, foi recebida hostilmente por pessoas contrárias ao ensino de questões de gênero nas escolas. A pesquisadora, quando anunciada pela instituição que a havia convidado, foi matéria de um abaixo-assinado para que sua presença fosse cancelada. Depois, ao chegar, sofreu agressões físicas e verbais. Mais tarde, Butler escreveu sobre sua experiência com os conservadores brasileiros.

A discussão sobre gênero é complexa e profunda. Não estudá-la, ou não se sensibilizar por ela por meio de obras já tão enraizadas na sociedade, é ser negligente. E hipócrita. Mulan é uma personagem de, pelo menos, 1.700 anos. “Orlando – Uma biografia” foi escrito há quase um século. E ambas as obras, embora que de maneiras diferentes, abordam o gênero.

É sério que não acham que isso tem sim que ser estudado?