Em maio deste ano, a UFAM foi palco da primeiríssima edição do sarau Essa é minha arte, que reuniu o trabalho de uma leva sempre crescente de artistas independentes (a maioria estudantes da própria universidade) e agitou o Centro de Convenções durante uma tarde inteira. Uma das atrações do evento foi justamente o concurso literário, que dividido nas categorias Conto, Crônica e Poema, premiou autores emergentes com uma publicação exclusiva aqui no Mapingua Nerd.

Confira abaixo o texto do escritor Douglas Laurindo, vencedor da categoria Conto:

 

A esperança dos insetos

Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes.
João Guimarães Rosa

Ele haveria de não mais esquecer o que a mãe proferiria:

“Evânia contou a sua história, e que tu a tomes, diacho!”

Segredou ao filho uma narrativinha dessas dolorosas, em que a sede pela vida é de uma agonia concreta, cheia de garras as quais abrem o âmago e grita à esperança um não rouco, embora claro, irônico e vivaz. O conteúdo era uma menina pálida, com ossos de flor, cabelos queimados e com poros entupidos de esperança. Aos treze anos perdera os pais e todo o bater de asas pueris. De semente passou a castanheira: empunhara dois galhos e duelava contra a fome diariamente, num sangrento gotejar mortal. Certa vez, à beira de um rio e sorrateira, correra ao encontro de dois urubus que ameaçaram roubar as vísceras de um boi. Hábil como um rato, preferira tomar o prato de um animal a ser prato de outro. Por quanto tempo? O suficiente para contar seu balaio choroso.

Só que depois a família da ribeirinha contista foi quem precisou de pedras à espera da abstração impiedosa…

Os pais, Jacó e Jucira, viviam à margem do mesmo rio, decorosamente fixado ao pé de um campinho de flores indistintas. Como fruto da semente intitulada, tinham três filhos cujos quereres oscilavam entre suar e descansar; sonhar e conter-se; buscar e fraquejar. Senão isto, que é que seria de seus destinos? O destino é poeira que cega. Há, no entanto, força que a filtre, que a derrube ou, quando não, que a estrangule se os filhos choram, desejosos de um punhado de sopa ou um mísero ovo. Os punhos eram esses pais de faces macias como um riso idoso.

Quem os visse figurantes daquela casinha de madeira, diria que acabariam como tábua roída por insetos; ah! mas cabe-lhe a asserção de que nem todo inseto é suficiente, pelo menos não para Jacó. Referente à casa do marido e mulher e, de certo modo, a de todos, as telhas abriam-se vorazmente a cada nascer de sol. A mãe dizia que eram os urubus. Só não os especificava nunca… Acresce que há dores que nem valem a pena doméstica e psíquica de um homem, quem dirá de uma criança. Se a chuva chegasse, penetrá-los-ia até que se encharcassem. Não seria de todo mal, já que a alma, às vezes, exige restauração.

O curumim mais velho ainda lembrava da reconstrução de seu lar; a memória o levava de um lago seco e morto à visualização de uma casa grande, gorda e com cheiro de madeira. Dentro, o mundo de alguns mundos, e destes, sim, pequenos outros – minuciosos, mas notados como Júpiter ou Mercúrio. Atribuiu-se a esse garotinho o olhar sobre os irmãos. Personificou-se: pegou os seus ovos e os aqueceu, tratando de os moldar como aves disciplinadas. No entanto, a chuva é cruel com a vazante, do mesmo modo que a resposta de seu desejo sobre eles. O destino trata dos adereços de cada cena.

A rebeldia no interior nunca há de sumir: o curumim do meio, por exemplo, ousou desobedecer aos pais. O rio de águas escuras a fim de castigá-lo quase lhe furou os olhos, pois ali debaixo havia um tronco pontudo, carregado de algas. Foi levado às pressas a casa; sua mãe, antes de o levar ao socorro, desferiu à pele molhada duas ou três pauladas. É duro a dor nos olhos e na pele, mas acredite: há durezas mais famintas, carecidas de água.

Ele ficou bem. O repouso, agente curativo, deu disciplina. Pelo menos durante um período…

Grudada a descrição, a casquinha mais nova, assim como todo broto, exigia delicadeza. Se a mandioca suja de terra quisesse, prontamente a teria. O amor desfaz o suor, ao que parecia. Pregou que o amar é colorir conforme se pede – não menos.

Jacó não media esforços para atendê-la, provavelmente por ser sua cria feminina. O pai, sábio agricultor, foi mestre: aos dois filhos ensinou o plantar cuidado às mulheres da casa. Fizeram-se semente, água e terra. Como produto, brotou uma fagulha necessária a toda humanidade: ser humano. Jacó era constituído de humanidade desde as pequenas células até o sujo da face. A pele queimada pelo sol nunca o impediu de cuidar para que não faltasse à mesa farinha. Suas mãos ásperas, o suar; quer dizer, não mais que a enxada empunhada primeira vez aos doze anos. Uma roça na visão de um menino é infinitamente dolorosa. Com o naufragar do tempo, a dor se eufemiza: são tempos de colheita. A mais leve tradução diria: são tempos de viver um pouco mais pomposo.

Jucira, formosa lebre no castanhal, tinha os olhos profundos; os lábios finos; magra como um l. Fora mãe aos vinte, e o amou como a Jacó, e, posteriormente, como ao curumim do meio e ao broto frágil. Amar é tonelada de chumbo com leveza de mato, e dado cria após cria. Não só amou, como também foi peça. O seu cenário, todavia, não fora a roça; sim, o útero de um hospital, passando às vendas e voando a cuidar de um sítio e de uns animais.

Mesmo que os tivessem aos montes, faltaria comida naquela noite. Não se come a si nem por um instante. Ao recolher de cada sono, o sol afirmará, pensariam no jantar. Pensariam, dito grosso modo, nas migalhas. Os dois mais novos é provável que tão logo dormissem; as três almas cuidadoras, entretanto, bateriam asas às profundezas do rio, buscando desvendar a solução do amanhã rasteiro. Atordoados, também correriam à mata escura, e não ouviriam mais que os sons noturnos de todas as espécies, de todas as coisas ali estadas. Quem sabe remando ao misterioso igapó encontrassem…

Habilmente, o sono os acorrentou.

O feijão ardeu no dia seguinte. Para disfarçar a falta de um acompanhamento, beberam água aos montes. Houve o silêncio de um mastigar. O curumim maior lavou sua louça silenciosamente, e, antes de pô-la sobre a estante de tábua, fitou o céu meio soberbo. No fundo de si, sentiu-se satisfeito. Não por encher o bucho, mas por ter tido a chance de ao menos disfarçar a fome que ali coexiste em muitos. Compreenderia que sorte é dispor de um feijão seco e ardiloso.

De tanto pensar, a boca secaria e se entreabriria, aspirando uma resposta.

Em derredor, somente paz e soar de mosquitos.

À margem do rio, a esperança os bisbilhotava.

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