Final do século XIX, Rio de Janeiro. Este é o recorte temporal e espacial de um dos livros fundamentais da literatura brasileira, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Última obra da trilogia realista, conta a história do casal Capitu e Bento. A beleza da obra se deve, principalmente, à dúvida: após mais de um século de estudos e pesquisas, não se pode dizer com exatidão se Capitu traiu Bento. E, bem, talvez não se queira descobrir de fato. É uma discussão eterna. Não quero, aqui, chegar a uma resposta.

É óbvio que não se pode transpor a lógica de um espaço social e de uma temporalidade específica a outra e esperar que tudo se encaixe. Por isso fiz questão, inclusive, de começar este texto especificando o contexto do qual o livro se trata essencialmente. No entanto, se pode, sim, fazer novas leituras sobre tempos passados, ainda mais em produtos ficcionais. É assim que evoluímos: contestando e começando novos questionamentos sobre o passado.

Pois bem.

É bem provável que você saiba que Bentinho, Bento e Dom Casmurro são as três fases do mesmo narrador-personagem. Bentinho corresponderia a adolescência e o amor inocente; Bento, ao amor no casamento e a chegada da maturidade; Dom Casmurro, por sua vez, é o apelido que ganha lá pelos 50 anos quando, de tão consumido pelos ciúmes, se enclausura para o mundo. É importante saber que o livro é contado somente pelo personagem masculino. Só sabemos um lado da história.

Importante frisar que não estou considerando isso como um defeito do livro ou dizendo que a obra é machista. Muito pelo contrário, acho que é a unilateralidade masculina da narrativa deixa, propositalmente, questões relacionadas a gênero mais nítidas. E é a dubiedade de tudo que aconteceu o que faz o livro ter mais de um século de existência e continuar sendo fonte de inspiração e discussão entre jovens.

Cena da minissérie “Capitu” (Globo, 2008), retratando a adolescência de Capitu e Bentinho

Bentinho, o adolescente, era extremamente apaixonado por Capitu, sua vizinha, e esse sentimento muda com a suspeita nunca resolvida de que ela poderia tê-lo traído com Escobar, seu melhor amigo. Segundo Bento, seu filho com Capitu, Ezequiel, seria, na verdade, fruto da relação entre sua mulher e Escobar. A partir disso, todas as justificativas de Bento passam pelo fato de que ela o teria traído, mesmo ele se dizendo completamente apaixonado por ela e seus tão famosos olhos de ressaca.

Repare que eu não me referi a “Dom Casmurro” como uma história de amor.

Bento se torna frio e abusivo com Capitu e Ezequiel. A morte de Escobar, seu então melhor amigo, não lhe traz muita empatia: ele apenas diz que Capitu, ao seu ver, tinha chorado mais do que deveria sobre o caixão. Além disso, chega a pensar em como envenenar o próprio filho, que considerava parecido com Escobar. Se Capitu foi infiel, pouco importa. Bento, de qualquer forma, se deixou consumir de forma doentia por ciúmes e sentimentos de idealização e posse. De fato o livro não é, mas poderia ter sido, uma história de amor.

As transformações de Bento, narradas por ele próprio, mostram o quanto suas palavras não são confiáveis. Narrando os fatos anos depois de terem acontecido, a progressão de suas idealizações, frustrações e paranoias ficam ainda evidentes. Quanto mais próximo do presente, mais nítidas são as relações entre os três Bentos e mais distantes eles parecem da realidade dos fatos. Seria o Bentinho adolescente tão puro quanto Dom Casmurro diz que era?

Cena da mesma minissérie, com Bento Santiago (Michel Melamed)

Capitu permanece Capitu, ainda que se saiba seu nome completo: Maria Capitolina de Pádua e, depois, Santiago.

O sentimento de Bento por Capitu é que vai de idealização romântica a frustração e ódio, corroída por uma desconfiança que nunca é completamente confirmada. Uma paranoia muito mais ligada ao sentimento de posse da mulher pelo homem do que se a traição realmente ocorreu. A transformação de Bentinho em Dom Casmurro não é por amor, é por ódio por Capitu não ter, no mínimo, sido o que suas expectativas adolescentes idealizaram que ela seria.

Uma traição por parte de Capitu não justificaria as atitudes de Bento, assim como o discurso de passionalidade não justifica nenhum dos relacionamentos abusivos que se vê todos os dias, fantasiados com “excesso de amor”, mas cobertos de abuso, na realidade. Bento não amava demais Capitu. Ele amava a idealização que tinha feito dela. A menor suspeita de que ela não fosse tão perfeita quanto imaginava o fez odiá-la, mesmo sem nunca ter certeza do que aconteceu.

Capitu (Maria Fernanda Cândido), já adulta, chorando a morte de Escobar, em “Capitu” (Globo, 2008)

Enxergar culpa na figura feminina é uma tendência bastante naturalizada, principalmente quando se fala sobre mulheres determinadas e com projetos próprios que, ao recusar se submeter às vontades masculinas, ou apenas se negar a ter algum tipo de relacionamento, são tachadas como vilãs. É a grande vitimização conhecida como friendzone.

“Dom Casmurro” é um dos meus livros favoritos e a minissérie “Capitu” uma das mais lindas experiências audiovisuais que já tive, cuja última cena me faz chorar até hoje. Apesar de, ou por causa disso, entendo que é um livro sobre desconfiança, que nunca poderia ser completamente revelado. Não é uma história de amor.

A grande tristeza é que poderia ter sido.