As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Das alturas onde os três homens estavam flutuando, podia-se ver a Torre sustentada pelo penhasco e o abismo que a circundava. O negro céu já não derramava mais as cinzas que o recobriam e em seu lugar estavam os luminares juntos à Lua agora fazendo parte do firmamento do Gohin. As vozes dos Duzentos Arrependidos1 se misturavam tremulantes ao som da névoa agitada que os sustentava com segurança.

“-Ouça, eles falam conosco, mas seu muito falar não permite entendê-los. Para onde estão nos levando?” Disse Melikae, em êxtase.

“-São teus servos, pois derrotaste nosso verdugo Dutryor. Quando o Escolhido se revelar na tua essência aquecida, estarás pronto para falar com os Três Reis. Aliás, cuida para que não sejas apanhado em jogos de palavras, pois se alegram em confundir todo aquele que chega até eles. Porém, seus divertimentos não devem ser dos mais agradáveis para ti.” Respondeu o velho.

A insistência de Yofehl intrigava Melikae. Saberia ele sobre algo que ainda não havia revelado? Obviamente que suas palavras indicavam que sim. Porém o bardo não tinha coragem de ir além sobre tal assunto. As menções no Livro dos Dias a respeito do Escolhido eram escassas por estarem além dos domínios dos Antigos sobre o Gohin. E Yofehl – apesar de estar com eles desde o início de sua jornada no lugar – não se fazia plenamente confiável.

“-Me sinto leve. O vento suave daqui é refrescante. E isso me faz pensar em como saí da servidão para ver tudo com meus olhos. Sempre tive a certeza que meu destino seria para grandes feitos… “

Cravedin interrompendo a conversa dos dois, falava com o olhar admirado pela paisagem que podia ver do alto. De braços abertos, estendia o pescoço fitando o firmamento iluminado pela Lua e suas filhas. A névoa o levava lentamente à frente de Melikae e Yofehl. Não parecia preocupado com o futuro. Jovem e sonhador que era, estava aproveitando o inacreditável momento que sua vida limitada como servo das noviças de Claekuth em Thelim jamais o havia proporcionado até a chegada ao Gohin. Sentia-se com a essência renovada e seus anseios pareciam ter encontrado guarida na aventura ao lado de Melikae.

“-Observa o jovem, bardo. Vai despreocupado e aparenta ser familiarizado com tudo ao seu redor. Parece até que temos um velho habitante dessas terras ao nosso lado.”

“-Ele veio aqui para realizar aquilo que imaginavam que eu não poderia por ter perecido. Mas me sinto felizardo de tê-lo encontrado… a saudade dos meus trouxe minha essência para perto da de Cravedin… e tu, velho homem… que já não está mais coberto de cinzas, não sentes o mesmo?

“-Cuidado, bardo. Não duvides da felicidade, porém, por vezes ela é enganosa como o doce veneno da embriaguez do vinho, rebaixando em falsidade até a nobreza dos reis. O que tenho visto me diz que a inocência ainda te levará para caminho tortuoso. Observa! Minhas cinzas se foram, e o alívio de saber que em breve cumprirei o Ciclo do Uno não me faz mais feliz que o tormento que me espera pelo meu malfazejo. Mas tudo o que pude fazer ao longo de minha cíclica existência foi aproveitar o que estava ao meu alcance. Quanto a isso não há arrependimento, somente a consciência que meu galardão está guardado para quando finalmente minha essência puder se lavar nas águas do Acherontis…aos pés de Fyr”

“-A minha felicidade… agora se faz em percorrer esse vasto céu iluminado pelas filhas da Lua. Se me fosse possível, uma canção bucólica tocaria para acalentar nossas essências. Mas fico satisfeito em apenas contemplar a brisa e o cantar hesitante dessas vozes que estranhamente me parecem conhecidas.

Enquanto Melikae ia logo atrás de Yofehl sobre os ares vendo o rodopiar lento da névoa, luzes azuis e vermelhas piscavam por entre as colunas cálidas de vento que delas emergiam. Cravedin e o velho homem pareciam não se importar com isso, porém o bardo – ao percebê-las – passou a olhar para baixo, buscando sua possível origem. Foi quando num instante pôde ver tudo ao seu redor com uma nebulosa transparência cintilante antes não notada. Os corpos dos dois agora emanavam luzes intermitentes que se misturavam as que vinham de baixo, se misturando com a vastidão do céu como se fossem espelhos refletindo palidamente a neblina.

“-Quem sois vós?” Disse Melikae.

As muitas silhuetas que saiam da névoa tomavam intermitentemente formas humanas nobres. Seu lento caminhar por sobre ela por vezes tornava-se nervoso, assumindo posições diversas. Aproximando-se de Melikae, disseram:

“-Dos que caíram, somos os que se reergueram. Porque nos libertaste estaremos contigo até a paga ser coberta… não vês? Estamos além do mundo que podes sentir, e assim estaremos até que as cinzas que nos recobrem sejam arrancadas uma a uma, pois já diriam os que virão: para cada dedo existe uma unha que o cobre. Nosso enfado de eras no ciclo se encheu até compreendermos o quão pernicioso nos foi estar aprisionados a ele. Agora que tu podes nos ver, sabe, pois, que estaremos contigo até que tudo esteja consumado e possamos retornar para onde tudo começou.

Foi então que as essências deles começaram a passear na mente do bardo Melikae. Em segundos pôde ver violentas batalhas acontecendo em campos banhados de sangue onde crânios esmagados por martelos e a carne esfacelada por grandes lâminas se misturavam a gritos de agonia de corpos ao chão na grama verde que sustentava monólitos maciços. O brandir do ferro das armas ecoava da guerra num som crescente de sino em meio à corrida frenética do mar de vultos que se espalhavam pelo vasto lugar tomado por gigantes imponentes que caminhavam pela terra derribando as construções de pedra e ceifando muitos. A desordem da cena trouxe muita aflição a essência do bardo contador, que de olhos fechados, tentou inutilmente evitar aquelas visões. Em instantes viu o desenrolar de eras de lutas e conquistas às custas da vida de inocentes, onde povos inteiros foram subjugados pela força dos arrependidos. O crescente terror na mente de Melikae tornou-se então insuportável, que confuso não compreendia o significado das visões que a ele eram dadas. Ao longe viu a essência tremulante de Cravedin e Yofehl se misturarem, sendo pedaços arrancados por ondas de névoa que emanavam dos vultos dos arrependidos. Porém, apesar da violência da cena… os dois esboçavam sorrisos de satisfação em meio a risadas comedidas e gritos distantes dos ceifados. Súbito silêncio então se fez.

***

“-Tua palavra é alimento de que tipo de essência?”

“-E a essência se alimenta de que tipo de palavra?”

“-E o alimento da palavra é dado a que tipo de essência?”

 

Os vultos suntuosos observavam atentamente o movimentar trêmulo de Melikae. Suas silhuetas negras o cercavam sinuosamente como se estivessem o avaliando. Atemorizado no lugar inominável pelas vozes que insistiam em fazer tais perguntas, o bardo disse com voz trêmula:

“-Não sei do que falam. Dizei, quem sois vós?”

Uma voz feminina ecoava da bruxuleante luz que brotava do abismo cantando um cântico de melodia severa. Sem saber onde estava e do paradeiro de seus companheiros, permaneceu em silêncio.

“-Não sabes o que digo?”

“-Sou eu quem não sabes quem sou?”

“-Dizes que não falo do que não sou quem digo?”

Enquanto Melikae os fitava, a melodia preencheu todo o lugar sem forma, e as perguntas a eles feitas se repetiam em forma de eco que iam e vinham em seus ouvidos. Sua perspicácia não parecia ser suficiente para decifrar o desejo de resposta àquelas perguntas. Porém, lembrou dos versos que havia aprendido na Canção da Palavra2*.

“-Se o alimento da palavra vem pelo que digo,

E se o não saber está além do não dizer,

Dizes tu a pergunta que fala a essência, que com complacência

Comigo carrego em saber agora quem és,

Pois o alimentar da palavra vem do dizer onde estão meus amigos,

E não no tramar o mal para o próprio umbigo.”

Os vultos em muito se admiraram da resposta de Melikae. Com a voz branda então disseram em uníssono:

“-Se sabeis quem somos, e quem seremos,

Nutrido pelo umbigo da palavra da existência de teus amigos,

Alimenta-nos com a resposta que fala a essência

Que se for carregada de benevolência e não de tramar o mal,

Chegará a ti, tremar, induto de por aqui passar,

Incólume como o Escolhido, que adormecido foi,

E que agora desperto terá sido!”

O firmamento – então derribado dos céus do Gohin – se misturou às palavras que se espalharam pelo lugar inominável. A escuridão outrora impenetrável deu seu lugar a luz das filhas da Lua que do chão clivaram os pés dos vultos em pequenos pedaços por onde escaparam as essências de Yofehl e Cravedin. Com um corpo único em enormidade, aproximaram-se do atônito Melikae que não teve coragem de continuar seus versos improvisados. As risadas gélidas dos vultos fragmentavam seus próprios corpos dando lugar à essência fundida dos dois. Crescendo rapidamente, os olhos iluminados de Cravedin e Yofehl ofuscaram então por completo a escuridão, e agora o lugar iluminado revelou suas belas tapeçarias de fino tecido ornado com fios coloridos e mobília bem ornada. Grilhões de fumaça acorrentavam os restos dos vultos que tentavam se remontar a todo instante sem sucesso por conta da presença dos olhos iluminados.

“-Pelo Uno! Que feitiçaria é essa que consome meu entendimento a ponto de atentar contra a minha sanidade? Disse Melikae embasbacado.

E dentro da nobre alcova, os fragmentos dos vultos foram varridos com um repentino vento oriental, e o bardo pôde assistir a destruição dos Três Reis, que deram seu lugar aos pequenos chifres emergentes das testas das essências amalgamadas de Cravedin e Yofehl. Das fundações do lugar ouvia-se o choro de crianças, e as gargalhadas deles cortavam o vento misturando as cinzas dos danados nobres Milcah3 que em vida ceifaram muitos infantes para saciar unicamente sua sede de sangue inocente. A criatura agora materializada possuía grandes punhos e os chifres que outrora eram pequenos agora eram grandes cornos. Diante de Melikae disseram com voz de trovão:

“-A parte que cabia à minha essência nesse lugar me foi finalmente encontrada, homem tolo. Tu que vieste buscar aquela que não pode ser vista… não a tratarás como eu usei de meus irmãos na tua tentativa de desmantelar a última morada dos livres. Observa que mesmo que me tenham lançado no poço da perdição, minha essência subsistiu à trama de tua mãe, e o choro dos meus filhos aprisionados em muito me alegram! Teu rimar pode ter lançado meus irmãos ao pó, mas a mim terás que adorar como teu redentor, pois eu sou o Escolhido para tirar do Gohin o velho ciclo e leva-lo para além das suas fronteiras, e teu filho esquecido que jaz em mim assim me fez saber com a ganância da própria essência! E nem tua castina abençoada pelo próprio Uno e nem meus filhos rebeldes poderão te livrar do destino de se tornar agora meu servo!”

A voz de Alabeth percorreu todo o cômodo. Sua aparência maldita revelou finalmente sua ligação com o demoníaco Servatenal4 desde seu reinado pervertido sobre a Formetalion. Diante do maior dos Bellihim dos Milcah, Melikae compreendeu finalmente que sua essência corria grande perigo.

Continua…


1-A respeito disso, é dito pelos Antigos que os mais valentes guerreiros das Terras Proibidas em muito choraram no Gohin enfastiados pelo seu destino enfadonho e por conta disso foram aprisionados pelo primeiro Devorador de Essências, assim chamado Dutryor;

2– Sobre esse negócio existe conflito entre os Antigos. Pois alguns dizem que os versos que Melikae fez uso para derrotar os Três Reis em seu jogo de palavras foram dados naquele momento pelo Uno para que ele não perecesse. Porém, é sabido que Melikae fazia uso do cancioneiro de seu tempo nas grandes disputas de verso em prosa no anfiteatro de Ziporih contra seus adversários. Assim, resta a dúvida se o bardo tenha juntado um pouco daqui e dali para com sua perspicácia decifrar as intenções dos Três Reis, ou se as ideias dos tão famosos versos da Canção da Palavra são tal qual  as apresentadas no Livro dos Dias e foram inspiração vinda diretamente do Uno.

3- Dizem os Antigos que os Três Reis eram na verdade as essências de Hihjik, Desmolaeh e Drimin.

4- O mais perverso das criaturas demoníacas dos Bellihim dos Milcah.