ATENÇÃO: ESTA LEITURA É RECOMENDADA PARA MAIORES DE 14 ANOS.

CONTÉM: Ato violento; lesão corporal; descrição de violência; presença de sangue; sofrimento da vítima; exposição ao perigo; menção a drogas ilícitas.

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A Sombra Escarlate – Um conto de Halloween

Era mais um Halloween na capital amazonense.

Nas redes sociais aquela velha reclamação sazonal sobre a preponderância da influência americana sobre a brasileira. Bairristas, indiferentes, hatters… Todos queriam sua fatia de atenção para expor de alguma forma sua opinião para pessoas que em sua maioria tinham pouca relevância em suas vidas. E nada de fato havia mudado quanto a isso, exceto a fragilidade do bom senso e da impaciência no tato social que apenas cresce cada vez mais.

Mas ficava feliz por pelo menos ler uma coisa ou outra sobre o folclore local. E o amazonense era o que mais me fascinava: garotos de cabelos vermelhos e pés virados, sereias de água doce, monstros vermelhos com mais de 2 metros de altura… Tudo isso fazia minha imaginação ir longe, algo tão importante nesses dias de uma realidade tão caótica.

Conforme os últimos raios de sol se perdiam na imensidão azul, eu começava a ser tomado por uma leve euforia pela festa que me aguardava. Sempre fui desse jeito: mesmo que soubesse da certeza do arrependimento que sentiria assim que chegasse, eu ainda ficava empolgado com qualquer coisa que quebrasse minha rotina.

Ouvi um barulho de carro à frente da minha casa seguido pela notificação do Ferio um pouco antes das 20h. “Desce ae!” Era o que dizia a mensagem. Tranquei tudo e desci.

Ferio era um amigo que conhecia há mais de 15 anos. Um nerd clássico. Cabeludo, barbudo, branco como uma vela e acima do peso assim como eu. Usava uma camisa do Star Wars e a mesma calça jeans de sempre e é claro, seus inseparáveis óculos com graus comparáveis ao fundo de uma garrafa de Baré.

Conversas sobre contos pós-apocalípticos de Platão, coincidências entre o cristianismo e a mitologia egípcia e razões pelas quais formigas radioativas gigantes poderiam ser aladas ou não tornavam extremamente divertida a viagem de quarenta minutos da minha casa até o Tarumã.

Ele entrou em uma daquelas ruas que eu seria incapaz de te dizer e você tão pouco acertaria mesmo se te enviasse a localização por GPS. Sempre achei aquela área um grande labirinto, e essa afirmativa apenas se confirmava mais e mais a cada incursão. Não demorou muito para sairmos do asfalto e entrarmos em um ramal de terra que se perdia na escuridão vazia.

O carro parou por fim em frente a uma casa bastante movimentada. Um contraste em relação a paisagem inóspita ao redor. Era uma casa grande, de alvenaria, estilo americano: dois pavimentos, varanda larga, janelas de madeira, telhas de barro… Tinha aquele equilíbrio entre o rústico e o moderno embora as paredes e muros descascados clamassem por uma reforma urgente.

– É a primeira vez que vejo uma casa tão “cara” estar tão mal cuidada! – Comentei quebrando o recente silêncio.

– Os donos são de humanas! – Ferio brincou enquanto estacionava.

Assim que saímos do carro já podia ouvir Let’s Dance do David Bowie e isso me animou mais ainda. Quem sabe não seria uma festa diferente das que costumava ir? Quem sabe não teriam pessoas realmente legais? Quem sabe não teria uma garota realmente legal, solteira e… Meus devaneios lúcidos foram interrompidos pelo Ferio estalando os dedos na minha frente.

– Vai entrar ou não, meu filho? – Ferio, O impaciente, parecia estar mais ansioso do que eu.

Assim que entrei lembrei porque gostava tanto de festas à fantasia. Assim como na maioria dos locais nessa data, havia todo tipo de fantasias: clássicas, bregas, cosplays e algumas tão originais e criativas que era preciso perguntar do usuário para descobrir o que realmente era.

Devia ter em torno de 60 pessoas entre dançantes totalmente desprovidos de vergonha, beberrões e seus concursos de quem comia mais jelly shots em menos tempo, grupinhos fechados que se isolavam embora parecessem mais atentos ao que acontecia ao seu redor do que ao assunto tratado e alguns introspectivos espalhados aleatoriamente que pareciam mais entretidos em seus mundinhos pessoais.

Assim como em toda festa, procurei com os olhos um lugar “seguro” para me acomodar. Encontrei um e apontei para o Ferio que acenou positivamente. Mas antes que desse mais que dez passos fui interrompido por uma mão pequena, fina e extremamente macia que tocava meu braço atrás de mim. Me virei.

– Vodka? – Disse uma mulher enquanto me oferecia um copo com um sorriso que me paralisou. Dotada de uma beleza estonteante: Morena cor de jambo, esbelta, tinha feições afiladas, olhos castanhos levemente puxados, longos cabelos pretos lisos e uma voz extremamente encantadora. Somados a uma delicada coroa de flores em sua fronte e um longo vestido branco, ela parecia ser a mulher mais linda que já ví na vida.

Peguei o copo que ela me oferecera e bebi vigorosamente a dose de vodka enquanto sorria e procurava em minha mente qualquer coisa impressionável para dizer.

– Esta festa está tão chata! Porque não vem comigo? – ela sussurrou em meu ouvido de uma forma tão suave e sensual que arrepiou lugares dentro de mim que desconhecia existir até então.

Olhei rapidamente para o Ferio dizendo um apressado “Volto já!” e recebendo em resposta um sorriso capcioso de quem diz “Não! Não ouse voltar tão cedo!”. E assim fui guiado pela minha musa para fora da festa, pela porta da frente e alheio a todos ali presentes.

Nos distanciávamos cada vez mais mata adentro até que o som da festa não podia mais ser escutado.

– Ainda falta muito? – Perguntei ansioso. Uma leve preocupação tomara o lugar da curiosidade inicial.

– Não se preocupe, meu amor! Estamos quase chegando! – Ela respondeu carinhosamente.

Chegamos em uma área bosqueada. Cenário esse que eu não imaginava existir por aqui. Percebi feixes de luzes lunares melhorem minha visão e ao tocarem minha guia, revelavam inscrições rúnicas por todo seu corpo. Era uma cena linda embora surgissem perguntas sobre aquele efeito.

– Maquiagem! – pensei. – Ela caprichou mesmo na fantasia! – era o pensamento que me conformava.

Ela então começou a cantar uma canção em uma linguagem que não podia compreender mas que pareciam palavras indígenas. E foi aí que percebi que tinha algo errado. Na verdade, tudo estava errado e não tinha entendido porque eu não havia reparado nisso antes.

A vodka! Sim! Ela colocou algo em minha bebida que me deixou entorpecido ao ponto de não conseguir me preocupar com nada. Apenas uma dose não era suficiente para causar todo esse efeito. E a cada verso que ela cantava, me sentia cada vez mais relaxado. Já não conseguia mais falar ou mexer a boca.

Havia uma pequena clareira no fim daquele bosque. Ao olhar mais de perto fiquei aterrorizado! No meio da clareira, uma pilha de ossos humanos cercados por muito sangue e pedaços do que pareciam ser órgãos internos.

Ela havia parado de cantar.

Tentei gritar. Não conseguia. Estava totalmente paralisado. Não sentia mais minhas pernas que pararam com o choque da cena que presenciava somados ao efeito de seja lá o que tinha ingerido.

Podia notar que pouco a pouco perdia a sensibilidade de cada parte do meu corpo enquanto ela me prostrava em cima daquela pilha de ossos.

Pela primeira vez na minha vida eu vivia uma explosão de sentimentos tão intensa! Sentia como se minha cabeça fosse explodir em desespero! Mas tudo que acontecia em mim parou quando ela olhou para o outro lado da clareira e gritou como um uivo forte e rasgado.

Em poucos segundos, como se nos aguardássemos, uma sombra escarlate de mais de 2 metros surgia por entre as árvores e parou ainda na floresta. Então minha guia pegou um punhal que estava no chão e apontou para meu pescoço.

Nesse ponto eu já não tinha sensibilidade alguma.

Não conseguia sequer fechar meus olhos.

Não conseguia fazer nada.

A única coisa que poderia fazer… Era olhar.